por: Christina Lamb, The Sunday Times
Quando a documentarista ucraniana Alisa Kovalenko [na primeira foto] leu o plano de paz do presidente Trump, uma imagem lhe veio à mente. «Vi o rosto de Ludmyla, uma professora de 75 anos de uma pequena aldeia perto de Kherson», disse ela. «Um soldado russo foi à sua casa em maio de 2022, esmagou seu rosto com a coronha do fuzil e quebrou seus dentes, cortou seu estômago com uma faca e a estuprou. Depois, roubou sua bicicleta e deixou uma bala de Kalashnikov como lembrança».
Embora tenha havido uma intensa atividade diplomática na Europa nas últimas duas semanas, desde a apresentação do plano de 28 pontos de Trump, apoiado pela rússia, o foco tem sido a negociação de concessões que forçariam a Ucrânia a ceder território a Moscovo/ou e a proibir sua entrada na NATO/OTAN. Para muitos ucranianos, no entanto, ainda mais alarmante é a proposta de uma anistia geral para todas as partes envolvidas em ações durante a guerra, o que significaria perdoar os autores russos de estupro. «Como você pode olhar nos olhos dessa mulher de 75 anos e dizer que não haverá punição pelo que aquele soldado russo fez com você?», disse Kovalenko, com os olhos marejados de lágrimas.
A ucraniana de 38 anos, natural de Zaporizhzhia, fazia parte de um grupo de quatro sobreviventes ucranianas de violência sexual e ativistas que vieram a Londres na semana passada para pressionar parlamentares, membros da Câmara dos Lordes e funcionários do Ministério das Relações Exteriores britânico a fim de obter apoio contra a anistia proposta. [...]
Kovalenko e as outras mulheres também se encontraram com a Duquesa de Edimburgo, uma importante ativista contra a violência sexual em conflitos e a primeira integrante da família real a visitar a Ucrânia durante a guerra. A duquesa discursou na exibição de «Traces», um comovente documentário dirigido por Kovalenko que retrata seis mulheres, incluindo Ludmyla, que foram estupradas por forças russas desde a invasão total em 2022. «Eles não me mataram, mas me destruíram», diz uma delas.
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Kovalenko foi uma das primeiras mulheres ucranianas a falar publicamente sobre seu próprio sofrimento após ser mantida em cativeiro por um oficial da inteligência russa em Donbas, em 2014. Ele a obrigou a se despir e tomar banho na sua frente enquanto limpava sua arma, e depois a estuprou. «Não há espaço para indiferença nesta questão», disse Melanne Verveer, diretora executiva do Instituto Georgetown para Mulheres, Paz e Segurança, que trouxe as mulheres a Londres. Verveer foi embaixadora itinerante dos EUA para questões globais da mulher. «A rússia tem usado sistematicamente a violência sexual como parte de sua campanha genocida para subjugar e destruir a Ucrânia, e também como forma de tortura em centros de detenção», acrescentou. «Trouxemos essas mulheres aqui para conscientizar e enfatizar a necessidade de responsabilização por esses crimes nas negociações de paz. Não há lugar para anistia para os perpetradores». «Justiça não é apenas uma palavra», disse Irina Dovhan, de 63 anos, que dirige a filial ucraniana da Sema, uma rede global de sobreviventes. «Para as sobreviventes, é a coisa mais importante».
Assim como Kovalenko, Dovhan foi vítima de violência sexual durante o conflito no leste da Ucrânia em 2014. Na época, enquanto administrava um salão de beleza em Donetsk, ela foi flagrada levando comida para combatentes ucranianos e presa pela «Brigada Vostok», uma notória unidade separatista pró-rússia. «Eles me acusaram de ser corretora de artilharia e me torturaram, estupraram e espancaram», disse ela. «Depois, me envolveram em uma bandeira ucraniana, me amarraram a um poste na praça com um cartaz dizendo 'Uma assassina de crianças' e os transeuntes vieram e me bateram e cuspiram em mim».
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«Justiça não é apenas uma palavra», disse Irina Dovhan, hoje de 63 anos, que dirige a filial ucraniana da Sema, uma rede global de apoio a sobreviventes. Uma fotografia dela sendo exposta ao pelourinho foi publicada no The New York Times, provocando indignação internacional, e ela foi libertada e foi para Kyiv. Mas, assim como Kovalenko — que transformou seu calvário em uma peça teatral que apresentou na Ucrânia e na Alemanha antes de revelar que era verdade, apenas para encontrar descrença — Dovhan lutou para que as pessoas a ouvissem. «Mesmo tendo cicatrizes visíveis, ninguém me disse que isso poderia ser documentado ou me deu qualquer apoio», disse ela. «Em 2016, um procurador/promotor finalmente me chamou para depor, mas quando contei sobre o estupro, ele surtou e disse 'sua dignidade foi comprometida' e me obrigou a ir embora. Foi muito traumatizante. Meu próprio país não se importou». «É por isso que muitas mulheres não testemunharam», concordou Kovalenko. «Era um círculo do inferno».
Por fim, em 2019, Dovhan foi a Haia para depor e conhecer o Dr. Denis Mukwege, o ginecologista congolês ganhador do Prémio Nobel, cujo Hospital Panzi tratou mais vítimas de violação/estupro do que qualquer outro lugar no mundo. Ele a incentivou a criar uma filial ucraniana da Sema, sua rede de apoio a sobreviventes. Uma das primeiras a se juntar foi Kovalenko.
Logo após a invasão [russa] em grande escala em fevereiro de 2022, elas começaram a ouvir relatos de situações semelhantes sob a ocupação russa e passaram a viajar para áreas libertadas ao redor de Kyiv, registrando depoimentos, e depois para Kherson, quando a cidade foi libertada. «São sempre estupros com extrema violência, e eles usam isso como arma para nos humilhar e tentar destruir nossa resiliência», disse Kovalenko.
Há 384 ucranianas que registraram casos de estupro junto [ao Ministério Público] / aos promotores, mas acredita-se que esse número represente apenas uma fração do total de vítimas. «Sabemos que é muito maior, são milhares», disse Dovhan. «A maioria permaneceu em silêncio por causa do grande estigma».
Elas coordenam um projeto de conscientização e viajam para comunidades em toda a Ucrânia, incentivando as mulheres a denunciarem os crimes. «Não há uma aldeia onde não encontremos uma vítima», disse Kovalenko. «Mas estamos quebrando o muro do silêncio e nossas vozes estão se tornando mais fortes».
Eles também viajaram para as Nações Unidas em Nova York, em março, com um grupo de sobreviventes do sexo masculino, para tentar incluir a rússia na chamada Lista da Vergonha, que reúne os responsáveis por violência sexual, no relatório anual do representante especial do secretário-geral da ONU. Para sua frustração, a rússia recebeu apenas uma advertência. «É absolutamente lógico incluir a rússia nessa lista», disse Kateryna Levchenko, comissária ucraniana para a igualdade de gênero, que fazia parte da delegação a Londres. Ela ressaltou que também há muitas vítimas do sexo masculino. «Até 70% dos prisioneiros de guerra sofreram violência sexual», afirmou.
Organizações ucranianas de apoio a sobreviventes estão lutando para continuar seu trabalho em meio a cortes nos orçamentos de ajuda humanitária e pediram às autoridades britânicas envolvidas na reformulação do plano de paz que não permitam nenhum tipo de anistia para os soldados russos que destruíram tantas vidas.
«A paz não pode ser conquistada ao preço da justiça», disse Kovalenko. «Quero que todos que estejam pensando em qualquer tipo de anistia pensem em Ludmyla e se lembrem dos crimes que [os russos] cometeram».
Oleksandra Matviichuk, que dirige o Centro para as Liberdades Civis na Ucrânia, vencedora do Prémio Nobel da Paz em 2022, alertou para as implicações globais da falta de punição por crimes de guerra na Ucrânia. «Isso arruinaria o direito internacional e criaria um precedente que encorajaria outros líderes autoritários a pensarem que podem invadir um país, matar pessoas e apagar suas identidades, e que serão recompensados com novos territórios», disse ela.



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