Até 1933, a Alemanha era o líder europeu em literatura, dominando tanto o volume total de publicações, quanto os lançamentos. Os irmãos Mann, Remarque, Hesse, Zweig, Brecht, Döblin e outros clássicos do modernismo trabalharam na República de Weimar. Havia um público leitor vibrante, um sistema de bibliotecas bem desenvolvido, inúmeras editoras e livrarias. É claro que o regime de Hitler não podia ignorar toda essa riqueza. As montanhas de livros queimadas em praças públicas permanecem como uma metáfora da relação dos nazis/tas com a literatura. Iniciadas por estudantes alemães e amplamente apoiadas por muita gente e pelo regime nazi, as fogueiras foram acesas em até 93 locais diferentes em toda Alemanha.
Mas essa imagem vívida da mídia era apenas a ponta do iceberg da “revolução cultural” lançada pelos nazis/tas. Na literatura, como em muitos outros campos, um processo chamado de “Gleichschaltung” — o apagamento da cultura liberal anterior e sua substituição pela emergente cultura nazi/sta — estava em curso.
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| Em 2018 em Moscovo foi fechada e destruída a única biblioteca pública ucraniana na rússia |
Barbian fala da “revolta das imagens” que a propaganda nazi/sta promoveu contra a República de Weimar. A ideia incutida era a de que a genuína literatura alemã havia sido relegada à clandestinidade entre 1918 e 1933 pelas obras de “burgueses de esquerda de todos os matizes” que haviam estabelecido monopólios culturais injustos. O futuro residia na vingança e no renascimento de uma nobre tradição.
A citação, extraída do texto do funcionário do MNE alemão e um jornalista pró-nazi Friedrich Hussong, soa absolutamente idèntico à de uma postagem numa publicação de um propagandista russo atual: “Algo milagroso aconteceu. Eles não existem mais. As pessoas que eram as únicas a serem ouvidas se calaram. Os onipresentes, que pareciam ser os únicos, desapareceram. [...] Nunca antes houve uma ditadura mais vergonhosa do que a ditadura dos 'intelectuais democráticos' e escritores humanistas. [...] Do fundo de nossos corações, desejamos a todos uma fuga bem-sucedida”.
Em essência, os nazistas orquestraram uma “revolução de cima para baixo” e, entre seus muitos inimigos, viam seu próprio país em um estágio anterior de sua existência. Isso ativou a mecânica da guerra civil, onde cidadãos leais ao Terceiro Reich tentavam destruir, suprimir ou reeducar tanto aqueles que permaneceram leais ao mundo da República de Weimar, quanto aqueles que eram fiéis a imagens alternativas da Alemanha.
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| 2025. A edição russa do livro «How to Be Authentic: Simone de Beauvoir and the Quest for Fulfillment» de Skye Cleary |
Os inimigos do regime eram divididos em “raciais” e “políticos”. Este último grupo incluía comunistas e socialistas, pacifistas, católicos fervorosos e qualquer pessoa abertamente crítica ao regime. A estética modernista e teorias inteiras (como a psicanálise) também eram alvos. Literatura sobre aborto, gênero e sexualidade, por exemplo, foi proibida. O expurgo começou com a lei “inofensiva” chamada “Sobre a Proteção dos Jovens contra Literatura Sensual e Obscena”.
Funcionários indesejáveis da biblioteca eram demitidos ou forçados a passar por cursos de endoutrinação nazi/sta. Somente membros da Câmara de Literatura do Reich tinham o direito de se dedicar à produção literária, mas nem todos eram aceitos e podiam ser expulsos a qualquer momento. Assim, um autor indesejável era proibido de exercer sua profissão. A recusa de admissão era baseada na insuficiência de “confiabilidade e adequação”. A eliminação dos inimigos não aconteceu da noite para o dia — eram muitos, difíceis de substituir imediatamente, e a síndrome do “sapo na água fervente” ainda persistia.
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| A biblioteca dos Tártaros da Crimeia, foi liquidada pelas forças de ocupação russas, logo em agosto de 2014 |
Em 1934, os 428 escritores judeus, que tinham o estatuto de soldados da linha de frente, viúvas de guerra ou simplesmente idosos, ainda eram membros da Câmara de Literatura do Reich. Em 1935, o serviço prestado à pátria e as dificuldades sociais deixaram de ser levados em consideração. No entanto, com permissão especial de Goebbels, certos “meio-judeus” e escritores casados/as com judeus foram autorizados a permanecer na Câmara do Reich. Primeiro, foram colocados sob a espada de Dâmocles e, depois, no final da década de 1930, tiveram seus laços cortados. Nos primeiros anos do regime nazista, livros do emigrado Thomas Mann ainda eram vendidos na Alemanha, e Erich Koestner chegou a receber um período probatório, após o qual pôde se tornar membro da Câmara do Reich. A expulsão dos indesejáveis era um processo irreversível — após o aperto dos parafusos, podia haver uma trégua, mas nunca um relaxamento.
Editores “não arianos”, relacionados com os judeus ou editores politicamente indesejáveis eram forçados a sair de suas próprias empresas usando o mesmo esquema — perdendo sua filiação ao Reichschaft e sendo proibidos de exercer sua profissão. Eles eram obrigados a vender seus negócios para proprietários ditos “arianos”, geralmente profundamente enraizados no sistema, e a um preço muito reduzido.
A influência dos antigos proprietários, por meio de diretores de fachada, era combatida. Essencialmente, os próximos ao regime obtiveram uma oportunidade legal para se apropriar de empresas bem-sucedidas. O mesmo aconteceu com as livrarias — algumas eram empresas familiares com histórias que abrangiam décadas, até mesmo um século, mas essas circunstâncias, é claro, não foram levadas em consideração. É verdade que houve exceções em todas as áreas — por exemplo, aquelas que receberam permissões especiais quando, aparentemente, não deveriam tê-las recebido.
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| Destruição de livros ucranianos nos territórios temporariamente ocupados do leste da Ucrânia |
O famoso editor Ernst Rowohlt tentou se encaixar na nova realidade. Ele se filiou ao NSDAP, mas se recusou a demitir seus funcionários judeus. Publicou um livro do judeu Bruno Adler sob um pseudônimo e continuou a imprimir as obras de Hans Fallada, um autor extremamente controverso para o regime. Mesmo assim, permaneceu à frente da Rowohlt Verlag até 1938, quando conseguiu passá-la para seu filho. Além de Fallada, Günther Weisenborn, que no início da década de 1930 era “conhecido como um dos piores agitadores comunistas nas universidades alemãs”, continuou a publicar na Alemanha até sua prisão em 1942. O ex-membro do partido comunista, Axel Eggebrecht, teve permissão para escrever roteiros de cinema até a queda do regime.
Às vezes, essas inconsistências eram explicadas pelo teatro manipulador de Goebbels, que não era dogmático, considerava a propaganda “a arte da elasticidade” e tentava explorar até os intelectuais críticos ao nazismo. Outras vezes, a razão residia nos benefícios económicos das empresas. Uma das ideias centrais do livro é que o regime nazi/sta estava longe de ser idealista e frequentemente negligenciava seus próprios valores ideologicops por razões egoístas. Em conclusão, Barbian descreve a política nazista como o “niilismo cínico” de bandidos vendiveis e carreiristas.
Outro motivo para a inconsistência foi que a literatura alemã ficou sob a alçada de vários departamentos simultaneamente. Cada um de seus líderes tinha sua própria visão para reformular o processo literário, o que levou ao confronto das abordagens. Em parte, os conflitos entre camaradas fortaleceram a liderança única de Hitler, e ele deliberadamente criava o terreno fértil para isso.
A literatura alemã, que havia experimentado um rápido florescimento na década de 1920, foi esmagada durante o Terceiro Reich. Quase todos os autores importantes se viram exilados, interna ou externamente, tiveram relações difíceis com o regime ou se tornaram suas vítimas (além das vitimas de repressoes, vários autores cometeram suicídio). O expurgo nazista foi bem-sucedido e a maioria da comunidade literária, segundo Barbian, sucumbiu à submissão geral (apenas uma minoria absoluta ousou protestar). No entanto, a segunda parte do plano — impor livros nazistas aos leitores — enfrentou sérios problemas.
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| A distopia clarividente «O Dia de Oprichnik» do Vladimir Sorokin, o autor e os seus livros são proibidos na rússia atual |
A literatura oficial gozava de amplo apoio informativo e considerável apoio financeiro do Estado. Goebbels idealizou grandes feiras de livros, habilmente associando livros (“armas do espírito pacífico do desenvolvimento”) ao militarismo e ao serviço ao poder. Mas, por algum motivo, os leitores não se mostraram muito entusiasmados. O novo diretor da biblioteca a encheu de jornalismo e ficção nazistas, o que levou a uma queda acentuada na frequência — “ninguém lê” esses livros. Os leitores migraram para bibliotecas pagas, que ofereciam uma “dieta mais leve”.
O material de leitura mais popular, como antes, eram romances policiais, de aventura e românticos, todos sem relação com o nazismo. A literatura de entretenimento gozou de incrível popularidade no Terceiro Reich, e essa popularidade só aumentou. O autor de maior sucesso da época acabou sendo o humorista Heinrich Spoerl. Durante a Segunda Guerra Mundial, Goebbels descreveu isso dessa forma: “As pessoas fogem dos fardos e dificuldades da vida quotidiana para espaços espirituais que nada têm a ver com a guerra”.
O público em geral aprecia literatura de entretenimento, mas ela se torna especialmente popular quando o mundo ao seu redor está doente. A década de 2020 ilustra bem isso: o desejo coletivo de “consumir para esquecer” anda de mãos dadas com a demanda por literatura leve e que distraia. Os ideólogos de Hitler não levaram em conta que o totalitarismo, em essência, cria uma realidade doentia. Uma pessoa em um ambiente totalitário se depara constantemente com sua própria impotência, humilhação, culpa por concessões quase inevitáveis e medo.
O abuso mental prolongado exaure o corpo. A busca escapista por cultura surge da necessidade de encontrar um lugar seguro, ao menos temporariamente — de transportar o próprio mundo interior para um lugar onde a autonomia possa ser preservada e onde não possa ser alcançada por um agressor com seus expurgos e reeducações. A televisão ou o rádio podem fornecer ruído de fundo. A concordância passiva com o apresentador não exige muito do espectador. Mas um livro é um meio complexo. Ele não funciona sem envolvimento. E as pessoas geralmente não estão dispostas a dedicar seus esforços a algo que as engane e as paralise.
Blogueiro
A política literária da rússia atual se assenta em 3 pilares: a perseguição dos escritores e editores russos, a proibição da publicação de livros (sob vários pretextos, geralmente o «extremismo» e a «propaganda lgbt») e a destruição da cultura e literatura ucraniana (assassinato dos escitores e destruição de livros nos territórios temporariamente ocupados). Aos escritores russos, o estado russo, impõe o estatuto de «agente estrangeiro», um espécie de aviso que o cidadão contemplado é obrigado a colocar em todas as suas publicações, em todas as plataformas (livros, artigos, publicações no YouTube e postagens em todas as redes sociais, etc), mesmo comunicando uma infelicidade na família ou publicitando um evento dos terceiros. A falha é sancionada com a multa, duas multas ao ano dão direito ao processo criminal com as penas de prisão efetiva. Desde meados de 2025 a legislação foi agravada e agora basta apenas uma não-publicação de aviso ao ano, para se iniciar o processo criminal contra o «infrator».
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| Os escritores ucranianos vítimas de perseguições políticas |
O nosso «3º Roma» ainda não chegou totalmente aos padrões do 3º Reich, mas está caminhando nessa direção. Assim, alguns deputados da Duma Estatal já começaram propor uma espécie de corporatização da literatura. Ou seja, a futura legislação que irá impor a solução usada pelo 3º Reich: apenas os escitores filiados na União dos Escritores da rússia (uma espécie de Câmara de Literatura do Reich) vão ter o direito de serem publicados na rússia. Com todas as consequências inerentes: só os escritores afetos ao regime serão admitidos e nenhum escitor fora da corporação será publicado sem uma permissão específica. Por enquanto a ideia não passa de um projeto. Mas não haja dúvidas, é um projeto que tem «pernas para anadar» na rússia atual. Cada vez mais e mais semelhante ao 3º Reich, cujas políticas está copiando talvez, de forma ainda mais acentuada, do que as políticas soviéticas do mesmo período.







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