O
quotidiano das ditaduras é um enigma constante para as pessoas que nasceram nos
países livres. A incapacidade de perceber a vida dos outros é bastante real. Mesmo
as pessoas que nasceram nos países comunistas da Europa, nem sempre conseguem perceber
a plenitude da crueldade das práticas diárias do regime norte-coreano.
O
realizador russo de origem ucraniana, Vitaly Mansky, diretor do filme Under
the Sun, explica o significado de alguns episódios do seu filme,
descodificando a narrativa oficial, permitindo aos espetadores perceber melhor
a realidade, escondida atras da cortina ideológica do regime norte-coreano (meduza.io).
Exposição
de flores
No
filme, há um grande episódio dedicado à exibição de flores: as pessoas vêm para
lá e são fotografadas em famílias. A própria exposição tem um significado
simbólico na tipologia da vida norte-coreana, porque é uma exibição de não apenas
flores aleatórias, mas duas espécies específicas – kimilsungia e kimjongilia. Uma
personifica a imagem do Kim mais velho, a segunda – a imagem da Kim médio. Mas
as pessoas que se interessam pela Coreia do Norte já sabem disso.
Mas
a fotografia tem um significado mais dramático. Nesta foto, vemos um jovem de
25 anos, uma mulher de 24 anos e uma criança de idade pré-escolar. O que precisamos
de saber? Todo homem na Coreia do Norte deve servir no exército por 10 anos,
inclusive no exército laboral; este jovem está servir e vive no quartel. A sua
esposa trabalha numa empresa e vive no recinto da mesma, nas suas barracas; as
crianças de idade pré-escolar vivem junto com as mulheres; quando as crianças entram
na 1ª classe, eles vão viver na escola. Ir para a exposição de flores é um dos
poucos dias em que as famílias podem se reunir. É importante que eles não
estejam se unindo em algum lugar isolado, mas ao público, numa exposição de
flores, onde necessariamente são fotografadas para a memória futura.
Culto
da família
Diante aos olhos dos cineastas, durante a celebração do Dia do Sol, quase toda a cidade veio ao
monumento aos líderes, mas neste fluxo de pessoas havia apenas uma família
clássica – mãe, pai e filha. E esta era a família que entrou no filme. Tudo o resto veio ora por grupos – femininas, masculinas, escolares ou
individualmente.
Nas
revistas ou livros publicados pela propaganda norte-coreana, se pode ver as imagens
que retratam as famílias, organizadas como composições simbólicas. Parece que
os norte-coreanos entendem subconscientemente que não têm famílias e isso é algo
anormal, portanto, eles tentam integrar essas famílias artificialmente construídas
na consciência externa do espectador ocidental. Ou seja, as famílias norte-coreanas
existem não como uma célula da sociedade, mas como “vejam, é a nossa família”.
E por isso a foto é impressionante: uma única família contrastando com as massas
populares ociosas.
Na
vida quotidiana e nas ruas de Pyongyang, por sinal, nunca são visíveis pais e
crianças andando juntos – a família como um elemento da paisagem urbana não
existe aqui.
Flores
artificiais
Todos
os que vêm pagar o tributo aos líderes trazem flores com eles, e aqui são vários
detalhes curiosos. O principal é que todas as flores são artificiais. Além
disso, essas flores são multifuncionais. Em Pyongyang existem os quiosques estatais/estaduais
onde as pessoas compram flores, pagando por eles em dinheiro – e depois as colocam
no monumento; mas quando lá se amontuadas muitas flores, vêm os trabalhadores
especiais e as levam de volta aos quiosques. Decorre uma espécie de turbilhão
de flores na sociedade, bastante blasfema em geral. Especialmente quando você
percebe que não são robôs, mas as pessoas vivas em adoração dos seus líderes – a
vendedora das flores, por exemplo. Não é muito claro como os norte-coreanos
conseguem simultaneamente adorar o seu líder e vender as mesmas flores vezes
sem conta.
Adoração
ao líder na Coreia do Norte é um verdadeiro fanatismo; acima de tudo, o que é
possível entender e imaginar, mesmo pelas pessoas com conhecimento do passado
soviético e estalinista. Há, por exemplo, funcionários de serviços secretos que
examinam flores, procurando pelos objetos metálicos ou explosivos. E isso, claro,
é um absurdo – nada é encontrado, os líderes supostamente são adorados.
Censura
Uma
parte da filmagem do “Under the Sun” era feita secretamente, tentando, à todo o
custo garantir que as imagens não sejam vistas pelos curadores norte-coreanos, outra
parte – pelo contrário, era filmada absolutamente abertamente e era entregue para
a verificação. Essa imagem foi proibida pela censura – tinha que ser destruída,
e levou vários dias de negociações para salvá-la. O que neste quadro não
corresponde aos requisitos de censura ideológica norte-coreana?
A
sombra. Uma sombra não pode cair sobre os líderes. Na Coreia do Norte todos os
painéis de mosaico com os líderes são protegidos por um telhadinho – uma vez
que não apenas a sombra não pode cair neles, a chuva não pode pingar e as aves
não podem fazer nada sobre os líderes. E, consequentemente, se existe um telhadinho,
este cria a sombra, que, apesar de todos os esforços cai sobre os líderes por algumas
horas do dia. Mas, dado isso nunca e por nada pode acontecer, nestas horas é proibido
filmar os painéis.
Relvados
/ gramados
Embora
muitas pessoas vivam em Pyongyang nas barracas, nas fábricas, uma parte da
população ainda assim vive nos apartamentos. Em frente ao hotel, onde viviam os
cineastas, por exemplo, estava um prédio de apartamentos, aquecido com lenha e
carvão. No inverno, a fumaça saia, de forma bucólica das chaminés. Ao longo das
avenidas os relvados/gramados são semeados, e cuidados por moradores específicos;
os velhos usam baldes e bacias com água e, literalmente, tiram com as pinças
qualquer folha ligeiramente amarela. Às vezes, eles cuidam para que ninguém
caminha sobre o relvado/gramado. Aparentemente, cada habitante tem a sua
própria área do relvado/gramado para cultivar, e ele encara essa tarefa como
uma grande responsabilidade.
A
Guerra
É
a cerimónia de entrada às fileiras dos jovens pioneiros. Parece ser uma
fotografia normal, olhada fora do contexto. Normalmente os guias oficiais norte-coreanos
são inúteis para perguntar sobre qualquer coisa, elas não respondem às
perguntas, mas às vezes eles próprios contam alguma coisa. Neste caso o guia, de
repente, disse que essas crianças (à direita do responsável com o microfone
nas mãos) são sustentadas pelo “amado líder”, porque os pais delas morreram na guerra contra América. A filmagem é de 2014, e crianças aqui têm 8-9-10
anos. Significa que por volta de 2004 um grande número de norte-coreanos morreu
em uma guerra que não existiu na realidade.
Após
o fim da guerra de 1953 – entre a Coreia do Norte e do Sul – se deu apenas um único
incidente no paralelo 38, quando um jornalista soviético decidiu fugir ao
território sul-coreano, ele foi perseguido por um destacamento de militares
norte-coreanos, no incidente morreram duas ou três pessoas. Onde realmente desapareceram
os pais dessas crianças não se sabe, apenas se podem fazer vários pressupostos.
Aquecimento
Os
estrangeiros em Pyongyang são levados aos edifícios com grandes átrios e espaços
amplos, mas que não são aquecidos, por anos e décadas. Como isso se sente em
fevereiro? Pior do que em qualquer cela de tortura: um frio completamente congelante.
Nas escolas, como regra, todas as salas de aulas e instalações são cobertas com
películas espessas para manter dentro pelo menos um pouco de ar quente. Ou seja,
as salas de aulas são aquecidas pela respiração dos próprios alunos. Quando estava
sendo filmado “Under the Sun”, todas as películas foram removidas pelos
norte-coreanos – para garantir a imagem mais bonita. Foi um desastre, muita
pena das crianças, eles tiveram que estar lá sem usar os casacos. Vitaly Mansky
colocou todas as suas roupas – todas as calças, camisas, um chapéu e ainda assim
era insuportavelmente frio. Simplesmente mortal.
Metro
/ metrô
O
metro/metrô de Pyongyang é bastante parecido às estações do metro de Moscovo,
mas os turistas estrangeiros não são permitidos andarem lá sozinhos, apenas sob
escolta. E um turista estrangeiro só pode visitar três estações. Os cineastas tiveram a
situação em que filmaram na carruagem do metro, mas devido ao antigo sistema de
iluminação, uma parte do material saiu com defeito e deveria ser filmado de novo. Foram ordenados à descerem da carruagem, Mansky insistiu – não, vamos continuar por
mais algumas estações.
Este
diálogo juntamente com a tradução levou cerca de 30 minutos, enquanto o comboio/trem
estava estacionado, ninguém saiu da carruagem, todo o trânsito foi
interrompido. A equipa foi proibida de ir além, mas os norte-coreanos sugeriram que poderiam mudar do comboio/trem,
indo na direção oposta, passando novamente nas duas estações permitidas. O
realizador explicou que filmou determinadas meninas nesta carruagem particular,
rodeadas pelas pessoas concretas – e se mudar da carruagem, as pessoas não
seriam mesmas. Pensava que era argumento imbatível. No entanto o guia disse
que isso não era um problema, se dirigindo muito rapidamente, literalmente duas
palavras em coreano aos passageiros. Todas as pessoas se levantaram, entraram
no comboio/trem indo na direção oposta e sentaram-se nos mesmos assentos em uma
carruagem vazia. Para realizador foi um choque, até hoje parece que sonhou. Mas era um facto.
Bicicletas
Na
Coreia do Norte, não existe [em geral] a propriedade privada, incluindo dos
meios de transporte. Se olhar com atenção às bicicletas desta foto, se pode ver
que todas ostentam um círculo vermelho. Círculos são os números de registo
de bicicletas, pertencentes às organizações. A bicicleta é uma forma de
transporte bastante privilegiada para um cidadão norte-coreano bem-sucedido, é lhe
entregue no serviço. Todos os outros usam o transporte público, ou caminham em
grupos.
Comida
A
foto mostra uma “modesta” refeição matinal de uma família comum de Pyongyang,
que, diante dos olhos do Vitaly Mansky foi trazida já empratada para as filmagens.
Como uma pessoa atenta e curiosa, o realizador espreitou na geleira/geladeira e
nos armários no apartamento onde era filmado “Under the Sun”, a geleira/geladeira
estava vazia. O que é mais interessante: quando a refeição foi colocada na mesa
em frente à família filmada, a escolta norte-coreana empreendeu muito esforço
para fazê-los à comê-la. Após as filmagens, a comida foi embalada e novamente
retirada. Além das filmagens, o realizador nunca viu os norte-coreanos à
comerem em algum lugar que seja.
A
equipa das filmagens jantava no hotel e um bom almoço - aperitivo, o primeiro e
o segundo prato custavam em torno de 8-10 Euros. A equipa também foi à
embaixada [russa], onde está localizada a mercearia constantemente mostrada em
vídeos de propaganda, inclusive no Primeiro Canal russo, como prova da
superioridade do modo de vida socialista sobre todas as outras formas de
existência humana. Nenhum coreano sequer é permitido entrar lá.
Ver o filme: dublado em russo, legendado em inglês |
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