quarta-feira, setembro 06, 2017

Coreia do Norte: a descodificação do quotidiano da ditadura

O quotidiano das ditaduras é um enigma constante para as pessoas que nasceram nos países livres. A incapacidade de perceber a vida dos outros é bastante real. Mesmo as pessoas que nasceram nos países comunistas da Europa, nem sempre conseguem perceber a plenitude da crueldade das práticas diárias do regime norte-coreano.

O realizador russo de origem ucraniana, Vitaly Mansky, diretor do filme Under the Sun, explica o significado de alguns episódios do seu filme, descodificando a narrativa oficial, permitindo aos espetadores perceber melhor a realidade, escondida atras da cortina ideológica do regime norte-coreano (meduza.io).

Exposição de flores
No filme, há um grande episódio dedicado à exibição de flores: as pessoas vêm para lá e são fotografadas em famílias. A própria exposição tem um significado simbólico na tipologia da vida norte-coreana, porque é uma exibição de não apenas flores aleatórias, mas duas espécies específicas – kimilsungia e kimjongilia. Uma personifica a imagem do Kim mais velho, a segunda – a imagem da Kim médio. Mas as pessoas que se interessam pela Coreia do Norte já sabem disso.

Mas a fotografia tem um significado mais dramático. Nesta foto, vemos um jovem de 25 anos, uma mulher de 24 anos e uma criança de idade pré-escolar. O que precisamos de saber? Todo homem na Coreia do Norte deve servir no exército por 10 anos, inclusive no exército laboral; este jovem está servir e vive no quartel. A sua esposa trabalha numa empresa e vive no recinto da mesma, nas suas barracas; as crianças de idade pré-escolar vivem junto com as mulheres; quando as crianças entram na 1ª classe, eles vão viver na escola. Ir para a exposição de flores é um dos poucos dias em que as famílias podem se reunir. É importante que eles não estejam se unindo em algum lugar isolado, mas ao público, numa exposição de flores, onde necessariamente são fotografadas para a memória futura.

Culto da família
Diante aos olhos dos cineastas, durante a celebração do Dia do Sol, quase toda a cidade veio ao monumento aos líderes, mas neste fluxo de pessoas havia apenas uma família clássica – mãe, pai e filha. E esta era a família que entrou no filme. Tudo o resto veio ora por grupos – femininas, masculinas, escolares ou individualmente.

Nas revistas ou livros publicados pela propaganda norte-coreana, se pode ver as imagens que retratam as famílias, organizadas como composições simbólicas. Parece que os norte-coreanos entendem subconscientemente que não têm famílias e isso é algo anormal, portanto, eles tentam integrar essas famílias artificialmente construídas na consciência externa do espectador ocidental. Ou seja, as famílias norte-coreanas existem não como uma célula da sociedade, mas como “vejam, é a nossa família”. E por isso a foto é impressionante: uma única família contrastando com as massas populares ociosas.

Na vida quotidiana e nas ruas de Pyongyang, por sinal, nunca são visíveis pais e crianças andando juntos – a família como um elemento da paisagem urbana não existe aqui.

Flores artificiais
Todos os que vêm pagar o tributo aos líderes trazem flores com eles, e aqui são vários detalhes curiosos. O principal é que todas as flores são artificiais. Além disso, essas flores são multifuncionais. Em Pyongyang existem os quiosques estatais/estaduais onde as pessoas compram flores, pagando por eles em dinheiro – e depois as colocam no monumento; mas quando lá se amontuadas muitas flores, vêm os trabalhadores especiais e as levam de volta aos quiosques. Decorre uma espécie de turbilhão de flores na sociedade, bastante blasfema em geral. Especialmente quando você percebe que não são robôs, mas as pessoas vivas em adoração dos seus líderes – a vendedora das flores, por exemplo. Não é muito claro como os norte-coreanos conseguem simultaneamente adorar o seu líder e vender as mesmas flores vezes sem conta.

Adoração ao líder na Coreia do Norte é um verdadeiro fanatismo; acima de tudo, o que é possível entender e imaginar, mesmo pelas pessoas com conhecimento do passado soviético e estalinista. Há, por exemplo, funcionários de serviços secretos que examinam flores, procurando pelos objetos metálicos ou explosivos. E isso, claro, é um absurdo – nada é encontrado, os líderes supostamente são adorados.

Censura
Uma parte da filmagem do “Under the Sun” era feita secretamente, tentando, à todo o custo garantir que as imagens não sejam vistas pelos curadores norte-coreanos, outra parte – pelo contrário, era filmada absolutamente abertamente e era entregue para a verificação. Essa imagem foi proibida pela censura – tinha que ser destruída, e levou vários dias de negociações para salvá-la. O que neste quadro não corresponde aos requisitos de censura ideológica norte-coreana?
A sombra. Uma sombra não pode cair sobre os líderes. Na Coreia do Norte todos os painéis de mosaico com os líderes são protegidos por um telhadinho – uma vez que não apenas a sombra não pode cair neles, a chuva não pode pingar e as aves não podem fazer nada sobre os líderes. E, consequentemente, se existe um telhadinho, este cria a sombra, que, apesar de todos os esforços cai sobre os líderes por algumas horas do dia. Mas, dado isso nunca e por nada pode acontecer, nestas horas é proibido filmar os painéis.

Relvados / gramados
Embora muitas pessoas vivam em Pyongyang nas barracas, nas fábricas, uma parte da população ainda assim vive nos apartamentos. Em frente ao hotel, onde viviam os cineastas, por exemplo, estava um prédio de apartamentos, aquecido com lenha e carvão. No inverno, a fumaça saia, de forma bucólica das chaminés. Ao longo das avenidas os relvados/gramados são semeados, e cuidados por moradores específicos; os velhos usam baldes e bacias com água e, literalmente, tiram com as pinças qualquer folha ligeiramente amarela. Às vezes, eles cuidam para que ninguém caminha sobre o relvado/gramado. Aparentemente, cada habitante tem a sua própria área do relvado/gramado para cultivar, e ele encara essa tarefa como uma grande responsabilidade.

A Guerra
É a cerimónia de entrada às fileiras dos jovens pioneiros. Parece ser uma fotografia normal, olhada fora do contexto. Normalmente os guias oficiais norte-coreanos são inúteis para perguntar sobre qualquer coisa, elas não respondem às perguntas, mas às vezes eles próprios contam alguma coisa. Neste caso o guia, de repente, disse que essas crianças (à direita do responsável com o microfone nas mãos) são sustentadas pelo “amado líder”, porque os pais delas morreram na guerra contra América. A filmagem é de 2014, e crianças aqui têm 8-9-10 anos. Significa que por volta de 2004 um grande número de norte-coreanos morreu em uma guerra que não existiu na realidade.

Após o fim da guerra de 1953 – entre a Coreia do Norte e do Sul – se deu apenas um único incidente no paralelo 38, quando um jornalista soviético decidiu fugir ao território sul-coreano, ele foi perseguido por um destacamento de militares norte-coreanos, no incidente morreram duas ou três pessoas. Onde realmente desapareceram os pais dessas crianças não se sabe, apenas se podem fazer vários pressupostos.

Aquecimento
Os estrangeiros em Pyongyang são levados aos edifícios com grandes átrios e espaços amplos, mas que não são aquecidos, por anos e décadas. Como isso se sente em fevereiro? Pior do que em qualquer cela de tortura: um frio completamente congelante. Nas escolas, como regra, todas as salas de aulas e instalações são cobertas com películas espessas para manter dentro pelo menos um pouco de ar quente. Ou seja, as salas de aulas são aquecidas pela respiração dos próprios alunos. Quando estava sendo filmado “Under the Sun”, todas as películas foram removidas pelos norte-coreanos – para garantir a imagem mais bonita. Foi um desastre, muita pena das crianças, eles tiveram que estar lá sem usar os casacos. Vitaly Mansky colocou todas as suas roupas – todas as calças, camisas, um chapéu e ainda assim era insuportavelmente frio. Simplesmente mortal.

Metro / metrô
O metro/metrô de Pyongyang é bastante parecido às estações do metro de Moscovo, mas os turistas estrangeiros não são permitidos andarem lá sozinhos, apenas sob escolta. E um turista estrangeiro só pode visitar três estações. Os cineastas tiveram a situação em que filmaram na carruagem do metro, mas devido ao antigo sistema de iluminação, uma parte do material saiu com defeito e deveria ser filmado de novo. Foram ordenados à descerem da carruagem, Mansky insistiu – não, vamos continuar por mais algumas estações.

Este diálogo juntamente com a tradução levou cerca de 30 minutos, enquanto o comboio/trem estava estacionado, ninguém saiu da carruagem, todo o trânsito foi interrompido. A equipa foi proibida de ir além, mas os norte-coreanos sugeriram que poderiam mudar do comboio/trem, indo na direção oposta, passando novamente nas duas estações permitidas. O realizador explicou que filmou determinadas meninas nesta carruagem particular, rodeadas pelas pessoas concretas – e se mudar da carruagem, as pessoas não seriam mesmas. Pensava que era argumento imbatível. No entanto o guia disse que isso não era um problema, se dirigindo muito rapidamente, literalmente duas palavras em coreano aos passageiros. Todas as pessoas se levantaram, entraram no comboio/trem indo na direção oposta e sentaram-se nos mesmos assentos em uma carruagem vazia. Para realizador foi um choque, até hoje parece que sonhou. Mas era um facto.

Bicicletas
Na Coreia do Norte, não existe [em geral] a propriedade privada, incluindo dos meios de transporte. Se olhar com atenção às bicicletas desta foto, se pode ver que todas ostentam um círculo vermelho. Círculos são os números de registo de bicicletas, pertencentes às organizações. A bicicleta é uma forma de transporte bastante privilegiada para um cidadão norte-coreano bem-sucedido, é lhe entregue no serviço. Todos os outros usam o transporte público, ou caminham em grupos.

Comida
A foto mostra uma “modesta” refeição matinal de uma família comum de Pyongyang, que, diante dos olhos do Vitaly Mansky foi trazida já empratada para as filmagens. Como uma pessoa atenta e curiosa, o realizador espreitou na geleira/geladeira e nos armários no apartamento onde era filmado “Under the Sun”, a geleira/geladeira estava vazia. O que é mais interessante: quando a refeição foi colocada na mesa em frente à família filmada, a escolta norte-coreana empreendeu muito esforço para fazê-los à comê-la. Após as filmagens, a comida foi embalada e novamente retirada. Além das filmagens, o realizador nunca viu os norte-coreanos à comerem em algum lugar que seja.

A equipa das filmagens jantava no hotel e um bom almoço - aperitivo, o primeiro e o segundo prato custavam em torno de 8-10 Euros. A equipa também foi à embaixada [russa], onde está localizada a mercearia constantemente mostrada em vídeos de propaganda, inclusive no Primeiro Canal russo, como prova da superioridade do modo de vida socialista sobre todas as outras formas de existência humana. Nenhum coreano sequer é permitido entrar lá.
Ver o filme: dublado em russo, legendado em inglês

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