sexta-feira, junho 16, 2017

«Rock-n-roll sob os ossos»: musica ocidental na União Soviética

«Rock sob os ossos» ou «rock sob as costelas» é uma tecnologia amadora das décadas de 1960-70, que consistia em copiar a música não divulgada oficialmente na URSS, desde os artistas ocidentais (Elvis Presley, Rolling Stones, Miles Davis, John Coltrane, entre outros) ou simplesmente proibida na União Soviética (Alexander Vertinsky). A música proibida e desejada era gravada em chapas de vinil, usadas para fazer raios-X.
Primeiros consumidores do «rock-n-roll sob os ossos» eram stilyagi, jovens, pertencentes à subcultura juvenil soviética que tentava copiar o estilo ocidental em vestuário, música, maneiras ou calão. Os especialistas copiavam os discos ocidentais originais em chapas, usadas para fazer raios-X, os vendendo clandestinamente aos stilyagi nos bazares ou outros locais semiclandestinos.

As chapas, conhecidas como “ossos” rapidamente se gastavam, a qualidade de som também não era melhor. Ao habitual “crepitação” do disco, acrescentavam-se os arranhões, sussurros do LP, cliques do gravador e do leitor. E em algumas partes da gravação, o som poderia ficar tão mal, que era difícil reconhecer a música tocada. Hoje é possível converter ao formato digital, qualquer coisa que seja, inclusivamente a música dos “ossos”, conservada nas colecções de amantes da música. E todos podem ouvir com seus próprios ouvidos o “rock sob os ossos”.

A nova vida do raio-X
Tudo começava com a fabricação da “disco”. Usavam-se as chapas velhas e inúteis de raios-X, que podiam ser encontradas em qualquer hospital soviético. Onde eram armazenadas em prateleiras, nas salas escuras de arquivos, cobertas com espessas camadas de poeira, até que um amante da música lhes dava uma chance de viver uma vida nova e maravilhosa.

A chapa recebia a forma mais ou menos semelhante ao habitual LP. Raramente era um círculo perfeito, mais frequentemente se assemelhava à um quadrado com as bordas ligeiramente arredondadas, outras vezes simplesmente parecia um retângulo.

Embora a forma, essencialmente não importava. A principal coisa era fazer, bem no centro do “disco”, um pequeno buraco redondo, como num LP convencional, sem o qual, pois claro, “ossos” não poderiam ser colocados no leitor. Este buraco podia ser feito com um simples furador. Mas deveria ser feito com muito cuidado, para não estragar a chapa delicada e frágil.

A máquina cobiçada
Gravador amador, construído e usado clandestinamente, autor é desconhecido. URSS
O ato de copiar a música era feito por um gravador especial. Este podia ser achado nas cidades soviéticas turísticas. Lá, era usado para fabricar postais de áudio – o turista declamava o texto, este era gravado em um LP pequeno, e enviado aos seus, para compartilhar as impressões sobre as férias.

Mas postais é uma coisa e “rock sob os ossos” é outra coisa completamente diferente. O desejo de comprar um gravador deste tipo podia chamar a atenção das autoridades repressivas soviéticas, afinal, o fabrico clandestino de discos poderia custar uma pena de prisão real.

Mas havia outra maneira de obter o gravador – construi-lo das peças de gira-discos convencionais. A principal diferença residia no facto do gravador possuir uma lamina cortante com a ponta bem afiada. Por isso, também diferia a estrutura interna – a base, onde era colocada a tal lamina era muito maior do que a do gira-discos – ali ficava o mecanismo que captava as ondas electromagnéticas. A tarefa de lamina afiada era de captar o som, gerado pelo soar da música, gravando o mesmo registo na chapa de raio-X.

Outra coisa importante, sem a qual a gravação de “rock sob os ossos” não seria possível, é a existência do disco de vinil original, com a tal música proibida. Os discos compravam-se no estrangeiro e contrabandeavam-se para URSS ou eram adquiridos já na União Soviética aos “firmachi”, vendedores semiclandestinos dos itens ocidentais. E, claro, era preciso ter o gira-discos, mais simples, que ainda hoje em dia pode ser achado no sótão da avó, guardado ao lado dos LP´s poerentes e esquecidos.

Quando todos os componentes eram reunidos nas mesmas mãos, nascia o tal «rock sob os ossos». O profissional da gravação era conhecido na gíria do meio como pisaka (escrevinhador).

Caluda! Decorre a gravação!
Aparelho construído clandestinamente, autor desconhecido, URSS
Era escolhido um lugar pequeno e discreto – no sótão ou no porão de algum edifício, de modo a não atrair muita atenção. LP de vinil era colocado no gira-discos, a chapa de raio-X – no gravador. Os aparelhos eram colocados um ao lado do outro e eram ligados.

O álbum começava a tocar, o gravador captava o som de música e a lâmina cortadora começava a oscilar ao mesmo ritmo, gravando na chapa de raio-X uma pista musical – parecida como de um disco de vinil. Assim decorria a cópia. O processo era longo e durava enquanto a música tocava. Era importante remover as lascas deixadas pela lâmina, pois estas atrapalhavam a gravação. Tudo isso tinha que ser feito em silêncio. Qualquer som estranho era captado pelo gravador, e então – acabaria por estragar os “ossos”.

Quando o registo era concluído, a chapa ordinária do raio-X se transforma em um verdadeiro LP – era possível ver a espiral incisa, muito fina, a distância entre duas faixas adjacentes não eram mais do que dois milímetros. É sobre ela, em seguida, deslizava a agulha do gira-discos, tocando a música, gravada, pelo gravador, em microscópicas e invisíveis ao olho nu “cavidades” e “protuberâncias” daquela faixa.

O milagre
A chapa deveria ser manobrada com muito cuidado. A chapa de raio-X, fina e frágil, poderia se rasgar e se estragar facilmente. O processo de criação de “rock sob os ossos” viciava. Criando pelo menos um “disco”, as pessoas ficavam imbuídas de uma atmosfera especial, criada pela música que tocava no silêncio e a proibição dessa atividade só adicionava o combustível ao fogo. Sem mover ou respirar, as pessoas se curvavam sob o leitor e gravador, ouvindo o crepitar de música e observando cuidadosamente a nova gravação do álbum. E não eram apenas as chapas de raio-X, era um milagre. O mais real de todos os milagres.

E depois a técnica foi levada à perfeição: a qualidade do som foi melhorado graças ao aquecer da lamina cortadora (um saber-fazer), pois não é nada fácil aquecer a lamina de corindo que está vibrando (Sic!), era usado o método do microondas, quando no início da década de 1960, nem sequer existiam a microondas na União Soviética. O primeiro microondas soviético foi lançado nos anos 1980, usando as peças japonesas. Mas os artesãos da música clandestina usavam na década de 1960 um pequeno gerador e uma pequena bobina de controlo de temperatura, escreve Back in USSR
Rudolf Fuks na década de 1950
Um dos “pisakas” mais famosos da URSS era Rudolf Fuks (1937), condenado em 1965 aos 2 anos de cadeia pela “falsificação de documentos”, e obrigado, em 1979, à emigrar ao Israel. Toda a sua coleção de discos, apreendida pela investigação, desapareceu sem deixar os rastos. Atualmente ele possui, na cidade de São Petersburgo, o seu próprio “Museu de Discos Musicais”. 
Rudolf Fuks em 2014
O filme documental «Vira o disco» (Flipside), é dedicado à subcultura de discos de vinil na URSS. Nos primeiros momentos do filme (1´00´´ – 5´30´´), Rudolf Fuks, conta a sua história e mostra os discos gravados em chapas de raio-X. Alguns deles funcionam até hoje!

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