Entre 2009 e 2011 na
cidade ucraniana de Kharkiv foi filmado, possivelmente, o projeto mais
ambicioso da história do cinema mundial. Uma mistura de experiência social e
cinema de autor, o projeto Dau filmou cerca
de 400 pessoas durante quase 4 anos no espaço fechado, ambientado na URSS
estalinista.
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O realizador Ilya Khrzhanovsky | Foto: film.ru |
O
realizador russo Ilya
Khrzhanovsky realizou o sonho de qualquer diretor do cinema: construiu o
seu próprio mundo cinematográfico na junção do sonho, jogo e realidade, em
que ele era um autêntico demiurgo por vários anos. A produção, que pretendia
ser uma adaptação cinematográfica do livro sobre prémio Nobel Lev Landau (baseado nas
memórias da sua esposa Concórdia “Kora” Landau-Drobantseva (1908-1984)), mas
que se transformou numa espécie de reality show, parque de diversões, experiência
social totalitária e uma máquina do tempo funcional.
Começamos
pelo início
O
livro de memórias da esposa do Landau – Concórdia “Kora” Landau-Drobantseva “Académico
Landau: Como nos vivemos”, muitos criticaram por “mostrar a roupa suja em
público”, acabou por não ajudar muito na realização. Em 2009, o realizador
chegou à chamar o livro de “loucura erótica”.
Em
2005 foi criada a empresa Phenomen Films, orçamento inicial do projeto era de
3,5 milhões de dólares, e o realizador decidiu duas coisas: prescindir de
atores profissionais e filmar na Ucrânia, na cidade de Kharkiv.
Um
dos operadores de Dau, Manuel Alberto Claro,
disse mais tarde: “Fiquei muito impressionado com os edifícios construtivistas
[de Kharkiv]. Provavelmente, a arquitetura é a principal coisa nessa cidade.
Muito bonita. Há algumas coisas que, se você apenas olhar para elas, parecerão
feias. Mas se você os filmar com amor, então na imagem eles se tornarão
atraentes”.
Em
Kharkiv, em 1932-37, Landau real viveu e trabalhou no Instituto Ucraniano de
Física e Tecnologia (UFTI). “Aqui [na Ucrânia] ao contrário da Rússia, não existe
vertical de poder, os ministros estão disponíveis e isso simplifica muito o
trabalho”, dizia o diretor. De fa(c)to, as autoridades locais estavam prontas para
dar apoio ao projeto (Landau escreveu uma das páginas importantes da história
da cidade), e os cidadãos de Kharkiv estavam prontos para trabalhar como extras
por uma gratificação bastante pequena – apenas por uma oportunidade
fantasmagórica de aparecer no filme. O trabalho começou.
Para
trabalhar na Ucrânia, o realizador criou a empresa “Phenomen Ucrânia”,
através do qual recebeu o financiamento ucraniano no valor de 6,2 milhões de
UAH (cerca de 750.000 dólares na época). Outros 350.000 € foram alocados pelos
dois fundos regionais alemães, 600.000 € foram dados pelo Eurimages, havia
financiamento estatal russo, escreve a página RBC.
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Foto: film.ru |
A
cidade de Kharkiv, entre outras coisas, atraiu o realizador pelo seu destino
sofrido. “É uma cidade maldita, que durante a fome [Holodomor] foi cercada
pelos vários anéis de tropas do NKVD. Milhões de pessoas morreram nas
proximidades da cidade. Nessas ruas, rompendo o cordão de isolamento, morriam
as pessoas inchadas e secas de fome, e os moradores da cidade foram proibidos
de lhes servir o pão. Na década de 1930, de oitocentos mil habitantes, duzentos
mil foram vítimas das repressões. Um em cada quarto. Especialistas,
trabalhadores, contabilistas eram retirados dos seus apartamentos. Nos porões
de NKVD era destruída toda a intelligentsia.
No decorrer da II G.M., a cidade foi tomada duas vezes pelos alemães, que
mataram mais de cem mil civis. Nesta cidade existia a mais cruel CheKa, cujo
chefe, arrancava a pele das pessoas vivas, cortava a carne em camadas”.
A
pré-produção
Durante
dois anos cerca de 300.000 moradores de Kharkiv passaram pelo casting, foram escolhidos
4.500 extras,
a produção comprava e recebia as coisas antigas – tapetes, conjuntos, roupas...
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Foto: film.ru |
Ao
pedido dos cineastas, o clube de viaturas retro de Kharkiv Samoxod levou apressadamente sua coleção
de camiões/caminhões, motocicletas e carros à um estado totalmente autêntico,
substituindo todas as peças modernas pelas peças originais: tudo era importante
para Khrzhanovsky. O exército de historiadores vasculhou os arquivos,
procurando por fa(c)tos esquecidos por todos: como eram as tomadas nos anos 1930?
E os rodapés nos anos 1940? Caixas de correio nos anos 1950? Sacos de farinha
nos anos 1960? A informação encontrada foi impressa, empacotada em catálogos
brilhantes, embebidas pelo cérebro do Khrzhanovsky.
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Foto: film.ru |
O
pessoal de guarda-roupa preparou 80.000 peças de roupa, 10.000 unidades foram costuradas
à partir do zero. Os marceneiros criaram 500 peças de mobiliário. Na construção
de casas ao estilo soviético da década de 1930 foram gastos cerca de mil metros
cúbicos de madeira das florestas ucranianas. No aeroporto de Kharkiv foi
recriado, em tamanho natural, a maquete da aeronave gigante K-7, de sete motores e com
a envergadura de asas de 57 metros.
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Foto: film.ru |
Em
maio de 2006, no Festival de Cinema de Cannes, o projeto do filme foi
classificado entre os 17 projetos internacionais mais promissores do programa
oficial do Atelier des Direktors.
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Foto: film.ru |
As
filmagens reais começaram em Kharkiv apenas em junho de 2008. Mas o edifício
real do Instituto Ucraniano de Física e Tecnologia (UFTI) na rua Chaykovsky não
satisfez o realizador. O diretor decidiu construir inteiramente novo instituto,
na piscina abandonada ao lado do estádio “Dynamo”.
Instituto
6.000
metros quadrados – o maior pavilhão em toda a Europa. Juntamente com o designer
de produção Denis Shibanov, foi criado o conjunto imaginário dos institutos de
pesquisa soviéticos (os chamados NII), engrossando as cores imperiais da
decoração à expressividade surrealista. As paredes do instituto eram decorados
com chapéus, em forma de explosões nucleares, as paredes eram cobertas com
estranhas placas de madeira de natureza vagamente freudiana, e a decoração
principal do pátio era uma composição de enormes mãos de metal segurando uma foice,
martelo e cérebro humano. Simbolismo sinistro adicional foi dado por cabeças de
pedra usando máscaras de gás, decoradas com chifres de rinoceronte. O realizador
gostava de declarar: “A década de 1930 na URSS era época medieval do século XX –
é um fa(c)to”.
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Foto: film.ru |
O
diretor afirmou que tentou “criar com base na biografia de Landau um
determinado mundo específico, que é uma cópia exata da URSS, mas ao mesmo tempo
abre a porta para uma nova dimensão. É como a URSS, que não estava lá, mas em
alguma realidade alternativa poderia ter sido”.
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Foto: film.ru |
Visitar
instituto tornou-se um entretenimento na moda nos círculos de beau monde pós-soviético. Os eleitos
tiveram essa oportunidade. Eles descobriram que Khrzhanovsky havia transformado
o local em uma reserva dos tempos soviéticos, vivendo com suas próprias regras
e funcionando sem parar. Muitos “turistas” falavam sobre essa experiência com
reverência, como se eles viajassem numa máquina do tempo. “Este é algum tipo de
realidade hipertrofiada, o estalinismo, que passou pelas obras de Kharms e
Kafka”, escrevia um jornalista. Muitos dos que tiveram a oportunidade de
trabalhar no instituto expressaram sua alegria muito mais contida.
Como
funcionava o instituto
O
território do instituto era um espaço especial onde as regras do mundo
circundante não funcionavam. Dentro estava a União Soviética do seu modelo estalinista,
recriada nos mínimos detalhes, e era necessário que os visitantes se
comportassem nesse espaço de acordo. O dinheiro soviético circulava ali, apenas
pratos soviéticos eram servidos na cantina, nos seus corredores eram passadas
as transmissões soviéticas do rádio. O instituto tornou-se algo como um museu
com exposições vivas, onde cada visitante se transformou imediatamente em parte
da sua exposição.
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Foto: film.ru |
O
tempo no instituto, fluía sob as leis especiais: o ano soviético durava aqui cerca
de um mês real. O “cumprimento” da época era constantemente monitorado: ao
longo do tempo eram mudados as roupas de funcionários e moda dos penteados, o
design de maços de cigarros vendidos no refeitório e as paredes do instituto
eram pintadas em tons mais claros, “gastos” pelo sol. As filmagens cobriram o
período de 1935 à 1968 (o ano em que Landau real morreu), até mesmo os rótulos
das caixinhas de fósforos mudavam.
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Foto: film.ru |
Todos
os hóspedes que entravam no instituto em 2008-2011 tiveram que passar pelo
mesmo procedimento. Primeiro, inventar a sua própria biografia (um cientista, funcionário
em missão de serviço, repórter de um jornal soviético – o limite era a sua
própria imaginação) e prometa cumpri-lo mais tarde, depois escolher as roupas
apropriadas em um guarda-roupa completo com sapatos envelhecidos
artificialmente, cortar (!) o cabelo para combinar com a época, receber a passe
especial, entregar um telefone celular e, em geral, qualquer coisa produzida após
um determinado ano (se no instituto estava 1952, então as coisas de 1953 eram proibidas).
Aqueles que usavam óculos modernos recebiam um adequado modelo soviético. Visitante
recebia um relógio mecânico, a cigarreira com cigarros. O “turista” recebia uma
cópia impressa com uma pequena lista de eventos soviéticos e estrangeiros do
respetivo ano, para que o visitante pudesse se manter no contexto do tempo. Em
uma caixa especial, recebia uma certa quantia de rublos soviéticos em notas
reais, correspondentes ao seu ano de lançamento. Quando o dinheiro acabava, era
possível trocar mais na mesma janela, mas já usando o seu próprio dinheiro
(aqueles que trabalhavam no instituto e recebiam salários em rublos soviéticos
podiam fazer o procedimento inverso, comprando as hryvnias ucranianas).
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Foto: film.ru |
Os
visitantes eram apalpados com um detector de metais para detetar possível “contrabando”,
eram forçados a assinar, usando a caneta de tinta num jornal de entrada /
saída, recebiam, na passe da entrada, um carimbo com a data de visita (na
dimensão soviética) e só depois eram deixados entrar ao território do
instituto. Nenhuma das dezenas de pessoas que cruzaram a fronteira entre o
presente e o passado poderia evitar o ritual. Para sair, seguia-se o mesmo
procedimento, lembrando os procedimentos no aeroporto internacional. Apenas o realizador
conseguia sair do instituto livremente: uma escada separada levava ao seu
escritório da parte de trás do prédio. Ele também nunca era revistado no posto
de controlo, nem examinavam os seus documentos.
Para
derrubar a arrogância do recém-chegado, estes tinham que conversar com os chekistas do Primeiro Departamento,
especificando o motivo da visita e verificando a força da sua biografia falsa; dizem
que os chekistas não eram atores (um ex-funcionário
do KGB e outro – ex-guarda prisional). Seguiu-se um passeio fascinante pelas
instalações: um pátio, dois edifícios residenciais (D1 e D2), laboratórios, a
cantina, o gabinete do director do instituto e salas de serviço para vários
fins. O encontro com Khrzhanovsky geralmente acontecia depois do almoço, quando
o visitante estava mais ou menos ciente se queria ficar aqui à trabalhar ou
não. Embora alguns tenham que esperar por um encontro com o demiurgo por muito
mais tempo.
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Foto: Phenomen Films |
No
instituto mantinha-se cuidadosamente a hierarquia social, que existia na URSS. Os
funcionários do instituto viviam em quartos mais ou menos decentes, Landau vivia
num apartamento luxuoso e os trabalhadores do serviço se amontoavam em algum
tipo de barracas.
As
dependências auxiliares incluíam armazéns, uma unidade de processamento de alimentos
(o chamado departamento “R”, onde toda a comida contemporânea era reembalada em
embalagens soviéticas), a redação do seu próprio jornal e até sua própria
prisão, que poderia ser usada em caso das violações maliciosas do regime
interno.
Violadores
do regime eram considerados aqueles que no território do instituto usavam as
palavras proibidas como “decoração”, “câmara”, “atores”, ou falaram em voz alta
sobre coisas que não existiam na URSS do camarada Estaline. Para perceber a
linguagem retro, devia-se ler uma brochura com as substituições recomendadas
(Internet – “enciclopédia”, e-mail – “telegrama”, etc.) Os departamentos do “Instituto”,
que não poderiam existir na realidade, também tiveram que ser codificados em
conversas – por exemplo, o guarda-roupa era o departamento “K”. Cada palavra
“proibida” era punida por uma multa de 1000 UAH (cerca de 125 dólares pelo câmbio
da época), os guardas vigilantes tinham o direito de multar até mesmo o diretor
se o erro foi cometido por um dos convidados do realizador na sua presença. Não
apenas palavras foram punidas, mas também ações: aqueles que estavam atrasados ao
trabalho ou aqueles que se esqueciam de renovar o seu passe eram privados de
seu salário de um dia.
Inicialmente,
isso não foi colocado no plano, mas à medida que o projeto progredia, ficou
claro que, para controlar o ambiente com mais eficiência, era necessário ter o seu
próprio aparato repressivo. Assim, surgiu um bloco de prisão com uma cela de
castigo, e no campus do instituto apareceram os vigilantes em calças soviéticas.
O “Departamento Especial” do instituto constantemente mudava as suas próprias
insígnias e nomes, que mudavam a cada poucos anos no tempo estalinista: OGPU,
NKVD, NKGB, MGB, MVA, KGB... Embora a sua essência, permanecesse inalterada.
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Lev Landau na cadeia de NKVD, 1938 |
O
espaço fechado do instituto agiu magicamente: muitos cidadãos que haviam caído
na atmosfera estalinista começaram a denunciar os seus colegas que não queriam
obedecer às regras. “Sob o regime totalitário, os mecanismos repressivos
desencadeiam automaticamente mecanismos de traição”, explicava o realizador à
atividade dos “delatores”. “Estou muito interessado nessas coisas”.
Não
apenas a prisão era real. Os cientistas de verdade moravam nos dormitórios do
instituto e, trabalhavam nos laboratórios, realizavam experiências científicas reais
com eletricidade e ratinhos brancos. Havia criação de porcos. E aqueles que
ficaram atrás das grades puderam descobrir que seus companheiros de cela eram
criminosos reais que o realizador recebia de “empréstimo” numa cadeia de
Kharkiv.