sexta-feira, janeiro 04, 2019

Projeto “Dau”: o parque cinematográfico do comunismo soviético

Entre 2009 e 2011 na cidade ucraniana de Kharkiv foi filmado, possivelmente, o projeto mais ambicioso da história do cinema mundial. Uma mistura de experiência social e cinema de autor, o projeto Dau filmou cerca de 400 pessoas durante quase 4 anos no espaço fechado, ambientado na URSS estalinista.
O realizador Ilya Khrzhanovsky | Foto: film.ru
O realizador russo Ilya Khrzhanovsky realizou o sonho de qualquer diretor do cinema: construiu o seu próprio mundo cinematográfico na junção do sonho, jogo e realidade, em que ele era um autêntico demiurgo por vários anos. A produção, que pretendia ser uma adaptação cinematográfica do livro sobre prémio Nobel Lev Landau (baseado nas memórias da sua esposa Concórdia “Kora” Landau-Drobantseva (1908-1984)), mas que se transformou numa espécie de reality show, parque de diversões, experiência social totalitária e uma máquina do tempo funcional.

Começamos pelo início

O livro de memórias da esposa do Landau – Concórdia “Kora” Landau-Drobantseva “Académico Landau: Como nos vivemos”, muitos criticaram por “mostrar a roupa suja em público”, acabou por não ajudar muito na realização. Em 2009, o realizador chegou à chamar o livro de “loucura erótica”.
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Em 2005 foi criada a empresa Phenomen Films, orçamento inicial do projeto era de 3,5 milhões de dólares, e o realizador decidiu duas coisas: prescindir de atores profissionais e filmar na Ucrânia, na cidade de Kharkiv.

Um dos operadores de Dau, Manuel Alberto Claro, disse mais tarde: “Fiquei muito impressionado com os edifícios construtivistas [de Kharkiv]. Provavelmente, a arquitetura é a principal coisa nessa cidade. Muito bonita. Há algumas coisas que, se você apenas olhar para elas, parecerão feias. Mas se você os filmar com amor, então na imagem eles se tornarão atraentes”.

Em Kharkiv, em 1932-37, Landau real viveu e trabalhou no Instituto Ucraniano de Física e Tecnologia (UFTI). “Aqui [na Ucrânia] ao contrário da Rússia, não existe vertical de poder, os ministros estão disponíveis e isso simplifica muito o trabalho”, dizia o diretor. De fa(c)to, as autoridades locais estavam prontas para dar apoio ao projeto (Landau escreveu uma das páginas importantes da história da cidade), e os cidadãos de Kharkiv estavam prontos para trabalhar como extras por uma gratificação bastante pequena – apenas por uma oportunidade fantasmagórica de aparecer no filme. O trabalho começou.

Para trabalhar na Ucrânia, o realizador criou a empresa “Phenomen Ucrânia”, através do qual recebeu o financiamento ucraniano no valor de 6,2 milhões de UAH (cerca de 750.000 dólares na época). Outros 350.000 € foram alocados pelos dois fundos regionais alemães, 600.000 € foram dados pelo Eurimages, havia financiamento estatal russo, escreve a página RBC.
Foto: film.ru
A cidade de Kharkiv, entre outras coisas, atraiu o realizador pelo seu destino sofrido. “É uma cidade maldita, que durante a fome [Holodomor] foi cercada pelos vários anéis de tropas do NKVD. Milhões de pessoas morreram nas proximidades da cidade. Nessas ruas, rompendo o cordão de isolamento, morriam as pessoas inchadas e secas de fome, e os moradores da cidade foram proibidos de lhes servir o pão. Na década de 1930, de oitocentos mil habitantes, duzentos mil foram vítimas das repressões. Um em cada quarto. Especialistas, trabalhadores, contabilistas eram retirados dos seus apartamentos. Nos porões de NKVD era destruída toda a intelligentsia. No decorrer da II G.M., a cidade foi tomada duas vezes pelos alemães, que mataram mais de cem mil civis. Nesta cidade existia a mais cruel CheKa, cujo chefe, arrancava a pele das pessoas vivas, cortava a carne em camadas”.

A pré-produção

Durante dois anos cerca de 300.000 moradores de Kharkiv passaram pelo casting, foram escolhidos 4.500 extras, a produção comprava e recebia as coisas antigas – tapetes, conjuntos, roupas...
Foto: film.ru
Ao pedido dos cineastas, o clube de viaturas retro de Kharkiv Samoxod levou apressadamente sua coleção de camiões/caminhões, motocicletas e carros à um estado totalmente autêntico, substituindo todas as peças modernas pelas peças originais: tudo era importante para Khrzhanovsky. O exército de historiadores vasculhou os arquivos, procurando por fa(c)tos esquecidos por todos: como eram as tomadas nos anos 1930? E os rodapés nos anos 1940? Caixas de correio nos anos 1950? Sacos de farinha nos anos 1960? A informação encontrada foi impressa, empacotada em catálogos brilhantes, embebidas pelo cérebro do Khrzhanovsky.
Foto: film.ru
O pessoal de guarda-roupa preparou 80.000 peças de roupa, 10.000 unidades foram costuradas à partir do zero. Os marceneiros criaram 500 peças de mobiliário. Na construção de casas ao estilo soviético da década de 1930 foram gastos cerca de mil metros cúbicos de madeira das florestas ucranianas. No aeroporto de Kharkiv foi recriado, em tamanho natural, a maquete da aeronave gigante K-7, de sete motores e com a envergadura de asas de 57 metros.
Foto: film.ru
Em maio de 2006, no Festival de Cinema de Cannes, o projeto do filme foi classificado entre os 17 projetos internacionais mais promissores do programa oficial do Atelier des Direktors.
Foto: film.ru
As filmagens reais começaram em Kharkiv apenas em junho de 2008. Mas o edifício real do Instituto Ucraniano de Física e Tecnologia (UFTI) na rua Chaykovsky não satisfez o realizador. O diretor decidiu construir inteiramente novo instituto, na piscina abandonada ao lado do estádio “Dynamo”.   

Instituto

6.000 metros quadrados – o maior pavilhão em toda a Europa. Juntamente com o designer de produção Denis Shibanov, foi criado o conjunto imaginário dos institutos de pesquisa soviéticos (os chamados NII), engrossando as cores imperiais da decoração à expressividade surrealista. As paredes do instituto eram decorados com chapéus, em forma de explosões nucleares, as paredes eram cobertas com estranhas placas de madeira de natureza vagamente freudiana, e a decoração principal do pátio era uma composição de enormes mãos de metal segurando uma foice, martelo e cérebro humano. Simbolismo sinistro adicional foi dado por cabeças de pedra usando máscaras de gás, decoradas com chifres de rinoceronte. O realizador gostava de declarar: “A década de 1930 na URSS era época medieval do século XX – é um fa(c)to”.
Foto: film.ru
O diretor afirmou que tentou “criar com base na biografia de Landau um determinado mundo específico, que é uma cópia exata da URSS, mas ao mesmo tempo abre a porta para uma nova dimensão. É como a URSS, que não estava lá, mas em alguma realidade alternativa poderia ter sido”.
Foto: film.ru
Visitar instituto tornou-se um entretenimento na moda nos círculos de beau monde pós-soviético. Os eleitos tiveram essa oportunidade. Eles descobriram que Khrzhanovsky havia transformado o local em uma reserva dos tempos soviéticos, vivendo com suas próprias regras e funcionando sem parar. Muitos “turistas” falavam sobre essa experiência com reverência, como se eles viajassem numa máquina do tempo. “Este é algum tipo de realidade hipertrofiada, o estalinismo, que passou pelas obras de Kharms e Kafka”, escrevia um jornalista. Muitos dos que tiveram a oportunidade de trabalhar no instituto expressaram sua alegria muito mais contida.

Como funcionava o instituto

O território do instituto era um espaço especial onde as regras do mundo circundante não funcionavam. Dentro estava a União Soviética do seu modelo estalinista, recriada nos mínimos detalhes, e era necessário que os visitantes se comportassem nesse espaço de acordo. O dinheiro soviético circulava ali, apenas pratos soviéticos eram servidos na cantina, nos seus corredores eram passadas as transmissões soviéticas do rádio. O instituto tornou-se algo como um museu com exposições vivas, onde cada visitante se transformou imediatamente em parte da sua exposição.
Foto: film.ru
O tempo no instituto, fluía sob as leis especiais: o ano soviético durava aqui cerca de um mês real. O “cumprimento” da época era constantemente monitorado: ao longo do tempo eram mudados as roupas de funcionários e moda dos penteados, o design de maços de cigarros vendidos no refeitório e as paredes do instituto eram pintadas em tons mais claros, “gastos” pelo sol. As filmagens cobriram o período de 1935 à 1968 (o ano em que Landau real morreu), até mesmo os rótulos das caixinhas de fósforos mudavam.
Foto: film.ru
Todos os hóspedes que entravam no instituto em 2008-2011 tiveram que passar pelo mesmo procedimento. Primeiro, inventar a sua própria biografia (um cientista, funcionário em missão de serviço, repórter de um jornal soviético – o limite era a sua própria imaginação) e prometa cumpri-lo mais tarde, depois escolher as roupas apropriadas em um guarda-roupa completo com sapatos envelhecidos artificialmente, cortar (!) o cabelo para combinar com a época, receber a passe especial, entregar um telefone celular e, em geral, qualquer coisa produzida após um determinado ano (se no instituto estava 1952, então as coisas de 1953 eram proibidas). Aqueles que usavam óculos modernos recebiam um adequado modelo soviético. Visitante recebia um relógio mecânico, a cigarreira com cigarros. O “turista” recebia uma cópia impressa com uma pequena lista de eventos soviéticos e estrangeiros do respetivo ano, para que o visitante pudesse se manter no contexto do tempo. Em uma caixa especial, recebia uma certa quantia de rublos soviéticos em notas reais, correspondentes ao seu ano de lançamento. Quando o dinheiro acabava, era possível trocar mais na mesma janela, mas já usando o seu próprio dinheiro (aqueles que trabalhavam no instituto e recebiam salários em rublos soviéticos podiam fazer o procedimento inverso, comprando as hryvnias ucranianas).
Foto: film.ru
Os visitantes eram apalpados com um detector de metais para detetar possível “contrabando”, eram forçados a assinar, usando a caneta de tinta num jornal de entrada / saída, recebiam, na passe da entrada, um carimbo com a data de visita (na dimensão soviética) e só depois eram deixados entrar ao território do instituto. Nenhuma das dezenas de pessoas que cruzaram a fronteira entre o presente e o passado poderia evitar o ritual. Para sair, seguia-se o mesmo procedimento, lembrando os procedimentos no aeroporto internacional. Apenas o realizador conseguia sair do instituto livremente: uma escada separada levava ao seu escritório da parte de trás do prédio. Ele também nunca era revistado no posto de controlo, nem examinavam os seus documentos.

Para derrubar a arrogância do recém-chegado, estes tinham que conversar com os chekistas do Primeiro Departamento, especificando o motivo da visita e verificando a força da sua biografia falsa; dizem que os chekistas não eram atores (um ex-funcionário do KGB e outro – ex-guarda prisional). Seguiu-se um passeio fascinante pelas instalações: um pátio, dois edifícios residenciais (D1 e D2), laboratórios, a cantina, o gabinete do director do instituto e salas de serviço para vários fins. O encontro com Khrzhanovsky geralmente acontecia depois do almoço, quando o visitante estava mais ou menos ciente se queria ficar aqui à trabalhar ou não. Embora alguns tenham que esperar por um encontro com o demiurgo por muito mais tempo.
Foto: Phenomen Films
No instituto mantinha-se cuidadosamente a hierarquia social, que existia na URSS. Os funcionários do instituto viviam em quartos mais ou menos decentes, Landau vivia num apartamento luxuoso e os trabalhadores do serviço se amontoavam em algum tipo de barracas.

As dependências auxiliares incluíam armazéns, uma unidade de processamento de alimentos (o chamado departamento “R”, onde toda a comida contemporânea era reembalada em embalagens soviéticas), a redação do seu próprio jornal e até sua própria prisão, que poderia ser usada em caso das violações maliciosas do regime interno.

Violadores do regime eram considerados aqueles que no território do instituto usavam as palavras proibidas como “decoração”, “câmara”, “atores”, ou falaram em voz alta sobre coisas que não existiam na URSS do camarada Estaline. Para perceber a linguagem retro, devia-se ler uma brochura com as substituições recomendadas (Internet – “enciclopédia”, e-mail – “telegrama”, etc.) Os departamentos do “Instituto”, que não poderiam existir na realidade, também tiveram que ser codificados em conversas – por exemplo, o guarda-roupa era o departamento “K”. Cada palavra “proibida” era punida por uma multa de 1000 UAH (cerca de 125 dólares pelo câmbio da época), os guardas vigilantes tinham o direito de multar até mesmo o diretor se o erro foi cometido por um dos convidados do realizador na sua presença. Não apenas palavras foram punidas, mas também ações: aqueles que estavam atrasados ao trabalho ou aqueles que se esqueciam de renovar o seu passe eram privados de seu salário de um dia.

Inicialmente, isso não foi colocado no plano, mas à medida que o projeto progredia, ficou claro que, para controlar o ambiente com mais eficiência, era necessário ter o seu próprio aparato repressivo. Assim, surgiu um bloco de prisão com uma cela de castigo, e no campus do instituto apareceram os vigilantes em calças soviéticas. O “Departamento Especial” do instituto constantemente mudava as suas próprias insígnias e nomes, que mudavam a cada poucos anos no tempo estalinista: OGPU, NKVD, NKGB, MGB, MVA, KGB... Embora a sua essência, permanecesse inalterada.
Lev Landau na cadeia de NKVD, 1938
O espaço fechado do instituto agiu magicamente: muitos cidadãos que haviam caído na atmosfera estalinista começaram a denunciar os seus colegas que não queriam obedecer às regras. “Sob o regime totalitário, os mecanismos repressivos desencadeiam automaticamente mecanismos de traição”, explicava o realizador à atividade dos “delatores”. “Estou muito interessado nessas coisas”.

Não apenas a prisão era real. Os cientistas de verdade moravam nos dormitórios do instituto e, trabalhavam nos laboratórios, realizavam experiências científicas reais com eletricidade e ratinhos brancos. Havia criação de porcos. E aqueles que ficaram atrás das grades puderam descobrir que seus companheiros de cela eram criminosos reais que o realizador recebia de “empréstimo” numa cadeia de Kharkiv.

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