sexta-feira, dezembro 23, 2022

O mundo alternativo brutal em que os EUA abandonaram Ucrânia

O porão de uma instalação russa de tortura em Kherson, no sul da Ucrânia (Evgeniy Maloletka/AP)

Imaginemos, só por um momento, um mundo sem a coragem ucraniana, ou as armas americanas e europeias, ou a unidade e o apoio das democracias em todo o mundo. A resistência ucraniana e o apoio americano impediram uma ampla gama de horrores. 

por Anne Applebaum

Nas vésperas da invasão, alguns especialistas americanos desaconselharam a oferta de ajuda militar à Ucrânia, alegando que a guerra terminaria muito rapidamente. Outros americanos repetiram a propaganda russa, questionando se a Ucrânia merecia existir ou se merecia ser defendida. Alguns políticos americanos concordaram com essas opiniões e, de facto, continuam a concordar. E se eles tivessem prevalecido? E se um presidente diferente estivesse na Casa Branca? E se um presidente diferente tivesse sido eleito na Ucrânia? Imaginemos, só por um momento, um mundo sem a coragem ucraniana, ou as armas americanas e europeias, ou a unidade e o apoio das democracias em todo o mundo.

Se o plano russo tivesse sido executado como estava escrito, Kyiv teria sido conquistada em apenas alguns dias. Zelensky, a sua esposa e filhos teriam sido assassinados por um dos esquadrões da morte que percorriam a capital. O Estado ucraniano teria sido usurpado pelos colaboracionistas que já tinham escolhido os seus apartamentos em Kyiv. Depois, cidade a cidade, região a região, o exército russo teria lutado contra os restos do exército ucraniano até finalmente conquistar todo o país. Originalmente, o estado-maior russo terá imaginado que essa vitória seria obtida em seis semanas.

Se tudo tivesse acontecido conforme planeado, a Ucrânia estaria hoje marcada por campos de concentração, câmaras de tortura e prisões improvisadas como as que que foram descobertas em Bucha, Izyum, Kherson e todos os outros territórios temporariamente ocupados pela Rússia e libertados pelo exército ucraniano. Uma geração de escritores, artistas, políticos, jornalistas e líderes civis ucranianos já estaria enterrada em valas comuns. Os livros em ucraniano teriam sido removidos das escolas e das bibliotecas. A língua ucraniana teria sido suprimida em todos os espaços públicos. Centenas de milhares de crianças ucranianas teriam sido sequestradas e transportadas para a Rússia ou traficadas para outras partes do mundo.

Os soldados russos, fortalecidos pela impressionante vitória, já estariam nas fronteiras da Polónia a implantar novos postos de comando e a cavar novas trincheiras. A NATO estaria num caos; toda a aliança seria forçada a gastar milhares de milhões para se preparar para a inevitável invasão de Varsóvia, Vilnius ou Berlim. Milhões de refugiados ucranianos estariam a viver em campos por toda a Europa, sem qualquer perspetiva de voltar para casa; a onda de simpatia que originalmente os recebeu teria diminuído há muito, com o dinheiro a acabar e a reação a caminho. A economia moldava teria entrado em colapso total; um governo pró-Rússia na Moldova poderia já estar a planear a incorporação desse país na emergente federação russo-bielorrussa-ucraniana que um propagandista russo saudou, cedo demais, a 26 de fevereiro.

Esse desastre não se teria confinado à Europa. Do outro lado do mundo, os planos chineses de invadir Taiwan estariam bem encaminhados, dado que Pequim assumiria que uma América relutante em defender um aliado europeu, e agora totalmente atolada numa batalha de longo prazo contra uma Rússia fortalecida, não sairia nunca do seu caminho para ajudar uma ilha no Pacífico. Os mullahs iranianos, igualmente entusiasmados com o sucesso da Rússia e a derrota da Ucrânia, teriam anunciado corajosamente que finalmente adquiriram armas nucleares. Da Venezuela ao Zimbábue e a Myanmar, ditaduras de todo o mundo teriam endurecido os seus regimes e intensificado a perseguição dos seus oponentes, agora certas de que as antigas regras - as convenções sobre direitos humanos e genocídio, as leis da guerra, o tabu contra a alteração de fronteiras pela força – teriam deixado de se aplicar. De Washington a Londres, de Tóquio a Camberra, o mundo democrático estaria a enfrentar a sua triste obsolescência.

Mas nada disso aconteceu. Porque Zelensky ficou em Kyiv, declarando que precisava de «munições e não de uma boleia»; porque os soldados ucranianos repeliram o primeiro ataque russo à sua capital; porque a sociedade ucraniana se uniu para apoiar o seu exército; porque os ucranianos em todos os níveis foram criativos no uso de recursos limitados; porque os civis ucranianos estavam e estão dispostos a suportar terríveis privações; devido a tudo isso, não estamos a viver essa horrenda realidade alternativa.

Agradecemos a tradução do António Campos.

Ler mais: https://www.theatlantic.com/ideas/archive/2022/12/zelensky-congress-speech-us-ukraine-support/672547/

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