Há momentos em que as tragédias se sucedem tão velozmente que a estupefação
fica cansada e o horror grassa sem que haja muito espanto. A derrubada de avião
civil por molecagem de filorrussos, que praticavam pontaria com mísseis no
leste da Ucrânia, parecia ser a coisa mais dilacerante que o noticiário poderia
trazer este ano. As vítimas ainda jaziam como monumentos à estupidez no trigal
transformado em campo santo, e cenas de embrulhar o estômago aconteciam ali
perto e em outras plagas.
Publicado em 08/09/2014 na Gazeta do Povo, Paraná, Brasil
A magnitude do sofrimento não bastou para gerar pausa reflexiva na
fraticida guerra patrocinada por Putin na borda oriental da Europa. A pretensão
imperial falou mais alto e o troar dos canhões, a matraca das metralhadoras, o
zunido dos mísseis foram réquiem aos mortos.
A colisão entre a expansão imperialista e a resistência nacionalista
ucraniana parece reminiscência do século 19. O hiato soviético impediu o curso
desses conflitos ao disfarçar o imperialismo russo sob a capa do marxismo. A
mão de ferro da União Soviética congelou por quase 80 anos as reivindicações
nacionais. A pax soviética imposta pela espada silenciou os dissensos dos povos
submetidos à hegemonia russa. De longe, todos os loirinhos eram “russos”. De
perto, a diversidade pulsava oprimida.
A guerra civil na Ucrânia ocorre nesse quadro complexo, mas não inexorável
como querem fazer crer os arautos das opções militares. O Estado é abstração. A
sua imaterialidade exige a mediação carnal para se exteriorizar, e nesse
momento as idiossincrasias, o caráter dos dirigentes faz diferença. Vladimir,
nome usual entre os eslavos, significa “Senhor da Paz”. No caso de Vladimir
Putin, a paz é a dos cemitérios. As suas características maquiavélicas estão
levando as agruras da guerra a espaço e tempo que poderiam viver história de
encontros e soluções, não desencontros e dissoluções.
Sim, há um responsável. A guerra não ocorre como evento da natureza. É ato,
não fato. Sem Hitler não haveria o holocausto. Sem Stalin, não haveria o
Holodomor. Há exagero na comparação, mas sem Putin não haveria os massacres de
fevereiro na Praça da Independência em Kyiv, nem a invasão da Crimeia, nem o
fratricídio de secessão do leste ucraniano. Nessa medida, Putin se aproxima da
narrativa de Rasputin, o mago da corte do último czar, de má fama sobre seus
predicados morais.
Inter arma silent leges, diziam os romanos no seu típico pragmatismo de
reconhecimento de que a força pode derrogar o direito e todas as considerações
de justiça que o acompanham. O mais forte impõe e o fraco se sujeita. Assim é
com o jacaré e a capivara. Deve ser desse modo entre os humanos? As leis devem
silenciar ante as armas?
Os valores éticos nas relações internacionais não impedem todas as
agressões, da mesma maneira que a existência de leis penais não impede a
ocorrência de crimes, mas serve como parâmetro para julgar se é direito ou
torto o comportamento de alguém. O princípio da não intervenção está sendo
violado por Putin ao enviar russos para lutar em território da Ucrânia.
A estridência que o Brasil usou para reclamar dos ataques de Israel a Gaza
deve ser a tónica da manifestação contra a injusta agressão à Ucrânia.
Fonte:
http://www.gazetadopovo.com.br/colunistas/conteudo.phtml?id=1497157&tit=Ras-Putin
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