domingo, março 19, 2017

No interior do salão de espelhos do Kremlin

As táticas da guerra de desinformação e das operações russas da guerra psicológica, travadas pelo Vladimir Putin e pelo regime russo desde a anexação da Crimeia em 2014 até os cartazes publicitários nos EUA.


Para Margo Gontar era mais fácil trabalhar com as imagens de crianças mortas. Elas estavam em todas as telas do seu computador - nos sites de notícias e nas redes sociais - ao lado de títulos que atribuíam as mortes a gangues fascistas ucranianas treinadas pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO/OTAN). Era o início de 2014, a Crimeia acabara de ser tomada por soldados que pareciam russos, falavam como russos, mas não usavam as insígnias nacionais russas e, como Vladimir Putin anunciava ao mundo todo, não eram russos. O leste da Ucrânia começava a ser tomado pelos separatistas. Gontar tentava revidar.

Ela localizava em geral imagens originais de gente morta numa simples busca no Google. Na realidade, algumas das fotos eram de outras guerras, mais antigas. Outras, ainda, eram tiradas de cenas de crimes que nada tinham a ver com a Ucrânia ou até mesmo de filmes. Margo postou sua pesquisa em um site chamado StopFake, cujo objetivo é destruir alguns mitos, criado em março [de 2015] por voluntários como ela na escola de jornalismo da Universidade Kyiv-Mohyla, em Kyiv. Dava uma sensação de satisfação poder separar a verdade da mentira, ter alguma certeza em meio a tanta confusão.

Às vezes, no entanto, as coisas ficavam mais complicadas. Os noticiários transmitidos pela televisão estatal russa começaram a dar muito destaque a mulheres gorduchas aos prantos e a velhos que falavam de nacionalistas ucranianos que espancavam cidadãos de língua russa. Os testemunhos pareciam absolutamente autênticos. Mas logo Margo notou que as mesmas mulheres gorduchas e os homens machucados apareciam em diferentes noticiários, identificados como pessoas diferentes. Em uma notícia, uma mulher era identificada como “residente em Odessa”. Na notícia seguinte, a mesma mulher era “mãe de um soldado”. Mais adiante, era uma “moradora de Kharkiv” e depois “ativista anti-Maidan”.
Em julho, depois do acidente com o voo MH17 da Malaysia Airlines sobre o leste da Ucrânia, Margo pesquisou na internet e selecionou trechos de teorias da conspiração pró-russas. Ela encontrou no Twitter o perfil de um controlador de tráfego aéreo que teria identificado jatos militares ucranianos seguindo o avião, mas não achou nenhuma prova de que o controlador existisse realmente. Achou dezenas de sites em russo e em inglês que, quase ao mesmo tempo, afirmavam que o MH17 fora derrubado pelos EUA numa tentativa desastrada de atingir o avião de Vladimir Putin. Líderes separatistas russos na Ucrânia divulgaram até mesmo notícias segundo as quais a bordo do avião só havia cadáveres, colocados antes da decolagem – um autêntico enredo da série de Sherlock Holmes da BBC.

As histórias eram claramente grotescas, como se seus criadores não tivessem a menor preocupação de serem apanhados e apenas quisessem desviar a atenção das evidências de que o avião havia sido derrubado por milícias apoiadas pelos russos. Margo começou a indagar se estaria caindo na armadilha do Kremlin dedicando todo esse tempo à tentativa de desmascarar suas histórias obviamente falsas.
Não demorou a perceber que ela e o StopFake estavam se tornando parte da história. A mídia russa já citava o StopFake em seus artigos, mas como se Margo Gontar apresentasse a história fictícia como uma verdade, em lugar de desmascará-la. Ela tinha a sensação de se ver refletida num espelho de cabeça para baixo.

Nestes momentos, ela sempre recorria à imprensa ocidental em busca de algo sólido, mas essa também começava a tropeçar. Sempre que fontes como a BBC ou o Tagesspiegel publicavam um artigo, sentiam-se na obrigação de apresentar a versão dos fatos fornecida pelo Kremlin – fascistas, conspiração ocidental, etc. – procurando dar o outro lado da história em busca de certo equilíbrio. Margo pensou, então, se não seria inútil ela buscar alguma certeza. Se a verdade mudava continuamente sob seus olhos e sempre havia o outro lado em todas as histórias, sobraria algo sólido para ela se orientar?

Depois de trabalhar durante meses no StopFake, ela passou a duvidar de tudo. Quem poderia afirmar que a fotografia “original” de uma criança morta que ela encontrara era autêntica? Ou será que também havia sido plantada? A realidade parecia maleável, esponjosa. Tudo o que os russos faziam não era mera propaganda com a finalidade de convencer e passível de ser desmascarada. Era completamente diferente: não só não podia ser refutado, como parecia dissolver a própria ideia de prova.

Ler o texto integral em: português; inglês ou russo.

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