segunda-feira, março 04, 2019

A tragédia da Ucrânia

Anne Applebaum relata a fome premeditada por Estaline/Stalin para subjugar a população da Ucrânia, frear qualquer tentativa de nacionalismo e liquidar as organizações que resistiam a integrá-la à URSS.

por: Mario Vargas Llosa, El Pais (Brasil)
Red Famine: a Guerra do Estaline contra Ucrânia
Em 1928, Estaline/Stalin fez uma viagem pela Sibéria que durou três semanas. Tinha derrotado seus adversários dentro do partido comunista e já era o amo supremo da União Soviética. Os cereais começavam a escassear no imenso território e, depois do que viu e ouviu naquela viagem, Estaline/Stalin tirou as conclusões ideológicas pertinentes. Segundo a doutrina marxista, a culpa era dos camponeses retrógrados, que, graças à expropriação dos latifúndios e à liquidação dos kulaks/kurkuls, tinham se tornado pequenos proprietários de terra e contraído as taras características da burguesia. A solução? Obrigá-los a ceder suas granjas e a se incorporar às fazendas coletivas que os tornariam proletários, a força poderosa e renovadora que substituiria sua mentalidade burguesa pelo fervor solidário dos bolcheviques.

Segundo ela, a fome foi premeditada por Estaline/Stalin e seu séquito de cúmplices – Molotov, Kaganovich, Voroshilov, Postishev, Kosior e alguns outros − para subjugar a Ucrânia, frear qualquer tentativa de nacionalismo em seu seio e liquidar as organizações que resistiam a integrá-la à URSS sob o açoite de Moscovo/u. Ela cita como prova o fato de que, naqueles mesmos anos, o Politburo soviético reduziu drasticamente a publicação de livros e jornais em ucraniano, assim como o ensino dessa língua nas escolas e universidades, e impôs o russo como idioma oficial do país.

Seja como for, em 1929 é iniciada a dissolução das pequenas propriedades agrícolas a fim de incorporá-las às fazendas coletivas. Os camponeses, que tinham visto com simpatia a revolução, resistem a entregar suas terras e seu gado, e a se associar às enormes empresas coletivas que, dirigidas por burocratas do partido, costumam ser pouco eficientes. As instruções de Estaline/Stalin são rigorosas: aquela resistência só pode vir dos inimigos de classe que querem acabar com o socialismo, e deve ser esmagada sem piedade pelos revolucionários. As brigadas comunistas percorrem os campos confiscando propriedades, gado, ferramentas agrícolas e sementes, e mandando para a prisão quem não colabora. Um dos chefes do GULAG, na Sibéria, envia um telegrama a Moscovo/u pedindo que não lhe enviem mais detidos porque já não tem como alimentá-los. Ao mesmo tempo, um prisioneiro escreve para sua família: “Que maravilha! Eles me dão um pãozinho por dia!”

As colheitas começam a encolher, os roubos e ocultação de alimentos se multiplicam por todo lugar, Estaline/Stalin insiste que o partido deve ser “implacável” em sua luta contra os sabotadores da revolução, e a fome entra em cena com suas terríveis sequelas: roubos, assassinatos, suicídios, aldeias que desaparecem porque todos os seus habitantes fugiram para as cidades na esperança de encontrar trabalho e alimentos. Os cadáveres já são tão numerosos que ficam estendidos nas ruas e estradas porque não há gente suficiente para enterrá-los.

Os testemunhos reunidos por Anne Applebaum são de arrepiar: há pais que matam seus filhos com as próprias mãos para que não sofram mais e, os mais desesperados, para se alimentar com eles. Já comeram todos os cães, cavalos, porcos, gatos e até ratos que conseguiam pegar, e os comunicados que chegam à Ucrânia vindos de Moscovo/u são cada dia mais urgentes: negar a fome e, principalmente, o canibalismo e os suicídios, e punir sem dó os verdadeiros causadores dessa catástrofe: os inimigos de classe, os fascistas, os kulaks/kurkuls, os responsáveis reais pelas calamidades que se abatem sobre a Ucrânia.

Quantos morreram? Cerca de cinco milhões de ucranianos, pelo menos. Mas não há como saber com exatidão, porque as estatísticas eram forjadas pela disciplina partidária que assim exigia ou pelo medo dos burocratas do partido de ser punidos como responsáveis pela fome. O Kremlin impôs, além disso, uma versão oficial dos acontecimentos que era reproduzida não só pela imprensa comunista, mas também pela capitalista, que fazia isso por meio de jornalistas vendidos ou covardes, como o repulsivo Walter Duranty, então correspondente do jornal The New York Times, que, comprado com casas e banquetes por Estaline/Stalin, dava um jeito, em artigos que pareciam redigidos por um Pôncio Pilatos moderno, de apresentar um quadro de normalidade e desmentir os exageros de certos testemunhos que conseguiam vazar para o exterior sobre o que realmente ocorria na URSS e, principalmente, na Ucrânia. Uma das exceções foi o britânico Gareth Jones, quem conseguiu percorrer a pé o coração da fome durante várias semanas e contar aos leitores ingleses do jornal The Evening Standard os horrores vividos na Ucrânia.
Ler mais sobre Gareth R. V. Jones
Ler um livro como o de Anne Applebaum não é um prazer, e sim um sacrifício. Mas obrigatório, se queremos conhecer os extremos a que podem levar o fanatismo ideológico, a cegueira e a imbecilidade que o acompanham, e a irremediável violência que, mais cedo ou mais tarde, vem como consequência. A fome e as mortes na Ucrânia ajudam a entender melhor o terrorismo jihadista e a bestialidade irracional que consiste em se tornar uma bomba humana e explodir em um supermercado ou uma discoteca, pulverizando dezenas de inocentes. “Ninguém é inocente!” era um dos gritos do terror anarquista segundo Joseph Conrad, que descreveu melhor do que ninguém essa mentalidade em O Agente Secreto.

Se ler o livro de Anne Applebaum provoca calafrios, como terão sido os anos que sua autora levou para escrevê-lo? Posso imaginá-la muito bem, imersa horas e horas em arquivos empoeirados, lendo informes, cartas de suicidas, sermões, e descobrindo de repente que está com o rosto encharcado de lágrimas ou que está tremendo da cabeça aos pés, como uma folha de papel, transubstanciada por aquele apocalipse. Ela deve ter sentido mil e uma vezes a tentação de abandonar essa tarefa terrível. No entanto, continuou até o fim, e agora esse testemunho atroz está ao alcance de todos. Aconteceu há quase um século lá na Ucrânia, mas não nos enganemos: não é coisa do passado, continua ocorrendo, está ao nosso redor. Basta ter a coragem da Anne Applebaum para ver e enfrentar isso.

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