terça-feira, julho 19, 2016

O escândalo do doping estatal russo com participação ativa do FSB

A Agência Mundial Antidoping (WADA) divulgou no último dia 18 de julho o seu relatório sobre o doping na Rússia. O relatório revela o esquema de ocultação dos testes positivos, o papel do FSB na troca e falsificação dos testes, assim como a participação ativa na fraude do Ministro do Desporto russo, Vitaly Mutko.

Seguem os pontos mais importantes do relatório de 103 páginas, lido pela Meduza.io:

Em que se baseia a investigação da WADA?
O relator, o jurista canadense Prof. Dr. Richard McLaren
Com a Comissão da WADA colaborou o ex-chefe do laboratório antidoping de Moscovo, ex-desportista russo Grigory Rodchenkov, que atualmente vive nos Estados Unidos. Ele deu algumas entrevistas e forneceu milhares de documentos. O líder informal da comissão independente da Agência Mundial Antidoping e autor do relatório (o Prof. Dr. de Direito da Universidade de Western Ontário, Canadá), Richard McLaren considerou que se pode confiar no Rodchenkov porque as suas afirmações foram confirmadas pela investigação. Outras fontes da Comissão são anónimas. Dado que WADA concedeu à investigação apenas 57 dias, Dr. McLaren escolheu não se comunicar com as autoridades russas – a sua experiência no inquérito anterior mostrou que isso é completamente inútil.

Como o teste positivo se torna negativo?

O primeiro esquema de ocultação de testes positivos, como foi descrito no relatório, funcionava na Rússia pelo menos desde o final de 2011 à agosto de 2015. O esquema era de forma muitíssimo simples, simplesmente marcando as amostras positivas como negativas. Este sistema é chamado por Richard McLaren de “método de amostras positivas em desaparecimento”. Ele estava tão impressionado com a simplicidade do sistema que não conseguiu resistir e, no relatório feito em linguagem profissionalmente seca, escreveu: «The disappearing positive

Um dos principais curadores do programa de doping era Yuri Nagornykh, o vice-ministro de Desporto da Rússia, nomeado em 2010. De acordo com o relatório, Nagornykh decidia pessoalmente os nomes dos atletas cujos testes positivos deveriam ser ocultados e outros, à quem não valia a pena proteger.

O procedimento para as operações de laboratório no caso de testes positivo era o seguinte. O funcionário registava o número da amostra, a data da amostragem, género do atleta e a sua modalidade e depois passava essas informações ao “correio”: este papel, em momentos distintos, foi cumprido pela Natalia Zhelanova, a assessora do ministro do Desporto da Rússia, Vitaly Mutko; pelo funcionário do Centro de preparação desportiva das seleções da Rússia, Alexey Velikodniy e pelo vice-chefe do Departamento de ciência e educação no Ministério do Desporto da Rússia, Avak Abalyan (a Comissão da WADA dispõe de troca de e-mails entre o pessoal de laboratório e os “correios”).

O “correio” enviava a informação para a Agência Antidoping da Rússia, que fornecia as informações sobre o atleta (no laboratório todas as amostras são anónimas). Depois disso, o vice-ministro do desporto, Yuri Nagornykh tomava a decisão “Salvar” ou “Quarentena”. A decisão “Salvar” significava que o laboratório russo marcava a amostra como negativo no sistema ADAMS (banco de dados da WADA). No caso da decisão “Quarentena” as análises eram efectuadas de acordo com as normas internacionais.

O relatório diz que entre os atletas russos a opção “Salvar” foi escolhida pelo Ministério do Desporto por 312 vezes, a “Quarentena” por 265 vezes. No caso dos estrangeiros, na maioria dos casos, as análises eram realizadas de acordo com as regras. Na correspondência entre o laboratório e Alexey Velikodniy em relação dos testes para o Campeonato Mundial de Atletismo em Moscovo foi dito: «Todos os estrangeiros – “Quarentena”».
No entanto, alguns estrangeiros foram protegidos contra as amostras positivas. O relatório da WADA menciona um futebolista estrangeiro que joga na liga russa. O relatório afirma que a decisão de “Salvar” foi tomada pessoalmente pelo ministro do Desporto, Vitaly Mutko. Provavelmente, estamos falar de um jogador do FC Krasnodar, para já, o seu nome é desconhecido.

Em dezembro de 2014 a WADA tinha planeado efetuar a inspeção do laboratório de Moscovo. A agência pediu ao seu chefe, Rodchenkov, para guardar todas as amostras existentes no laboratório. Após receber a carta da WADA, o laboratório russo destruiu cerca de oito mil amostras colhidas até 10 de Setembro de 2014. Após a destruição das amostras, no laboratório ficaram 37 amostras positivas, rotuladas de negativas, colhidas entre setembro à dezembro de 2014. No dia 12 de dezembro, cinco dias antes da chegada da comissão da WADA, Rodchenkov se reuniu com o vice-ministro Yuri Nagorny e este decidiu chamar os “curandeiros”. Na mesma noite ao laboratório veio o pessoal do FSB, eles levaram as amostras e as devolveram abertas. Como explica Rodchenkov, os seus funcionários não tiveram o tempo para recolher a urina limpa de atletas visados, por isso usaram a urina limpa de quaisquer outros atletas. A auditoria dessas amostras revelou que os recipientes foram violados e em três deles, o ADN existente não coincidia com o ADN do atleta.

A Comissão da WADA solicitou a verificação de amostras negativas retiradas do laboratório de Moscovo. Os resultados mostraram que 89% delas foram positivas, mas no sistema eram marcadas como negativas. Em geral, em 2012-2015 foram marcadas como negativas as 643 amostras; como o relatório aponta, isso acontecia mesmo quando a Comissão da WADA realizava a sua investigação. De acordo com Rodchenkov, em 2015 Nagornykh queria acabar com esta prática, mas a vice-chefe do Centro de preparação desportiva das seleções da Rússia, Irina Rodionova insistiu na sua continuação.

O laboratório falsificava as análises positivas, não apenas no domínio de atletismo, mas também nas outras modalidades desportivas: levantamento de peso, diversos tipos de lutas, canoagem, patinagem no gelo, futebol, basquete, vólei, etc. O laboratório era completamente dependente do Estado. Como contavam à comissão as suas fontes, as decisões não eram tomadas no laboratório, mas no Ministério do Desporto da Rússia. Os funcionários tinham de cumprir as ordens sob a ameaça de demissão. De acordo com o relatório, o sistema foi construído de tal forma que, no caso da descoberta da fraude com os testes, a culpa podia ser atribuída ao laboratório. O laboratório de Moscovo perdeu a sua certificação na WADA em abril de 2016.

O esquema de falsificação de provas em Sochi
Os métodos de ocultação de amostras positivas funcionava bem em todos os casos, exceto nas grandes competições, onde eram implementados os sistemas de controlo adicional, por parte das agências estrangeiras. Nos Jogos Olímpicos em Sochi, havia este controlo. Neste caso, foi necessário utilizar outro método – a substituição de amostras positivas pelas negativas. Para fazer isso, o FSB criou uma forma de violação de selos nas amostras seladas que ao olho nu pareciam intactas. Os peritos mostraram à Comissão como isso poderia ser feito tecnicamente.

A Comissão analisou as amostras de Sochi, bem como vários recipientes de laboratório antidoping de Moscovo e verificando os sob um microscópio, encontrou os vestígios de violação. Das amostras recolhidas em Sochi foram testadas 11, selecionadas aleatoriamente, e todos tinham marcas de violação. Além disso, descobriu-se que numa das amostras da vencedora [russa] dos Jogos Olímpicos de Sochi não estava o seu ADN – a urina pertencia à uma outra pessoa.

Para a substituição das amostras positivas em negativas, os atletas coletavam a sua urina nos períodos em que essa não tinha nenhum vestígio de doping. A urina era armazenada no Centro de preparação desportiva das seleções da Rússia. A responsável pelo processo era a vice-chefe do Centro, Irina Rodionova. Ela também fazia parte do Comité Olímpico da Rússia durante os Jogos Olímpicos em Sochi. Posteriormente, o FSB recolhia a urina e a levava à Sochi.
A troca de amostras em Sochi ocorria tal, como foi descrito no artigo da The New York Times, citando Rodchenkov. As amostras eram passadas através de um buraco na parede entre o armazém das amostras, localizado dentro do perímetro seguro e uma sala contígua, mas fora deste perímetro. A urina era manejada pelo funcionário do laboratório antidoping do Moscovo, Yevgeny Kudryavtsev. As amostras eram levadas pelos oficial de FSB, Evgeny Blokhin ao edifício FSB, localizado ao lado do laboratório russo, e, em seguida, este devolvia-as abertas. Ele também fornecia a urina limpa.
O buraco na parede, via Bryan Figel, Icarus Documentary Film
Então Grigory Rodchenkov, com ajuda dos funcionários do laboratório enchia os recipientes com a urina limpa. Além disso, quando era necessário que amostra possua a densidade específica, os funcionários russos ora adicionavam sal à urina, ora a diluíam com água. O laboratório em Londres estudou várias amostras de Sochi e descobriu que os indicadores de sal em alguns deles estavam acima do padrão: com este nível de sal na urina, os atletas viveriam sob uma ameaça à sua vida.

O cocktail de doping “Duchesse”
Grigori Rodchenkov nos EUA, foto @Emily Berl para NYT
O ex-chefe do laboratório antidoping de Moscovo, Grigory Rodchenkov contou sobre o cocktail, da sua própria autoria, de três substâncias que deveriam ser dissolvidas em álcool. Atletas tiveram que lavar a boca e depois cuspir o líquido. Neste caso, a dopagem era mais rapidamente excretada do corpo. Os especialistas contratados pela Comissão da WADA confirmaram que no caso da administração bucal, o período de detecção do doping fica mais reduzido.

De acordo com Rodchenkov, ele não estava distribuindo o seu cocktail, disso foi encarregue Irina Rodionova. Rodchenkov também informa que o cocktail foi usado por muitos atletas russos em Londres. Isto é confirmado pelos dados do Comité Olímpico Internacional – em amostras de oito atletas, numa segunda testagem, foram encontrados os vestígios do [anabólico] turinabol, um dos componentes do cocktail (Rodchenkov mais tarde o substituiu por uma outra droga). Cocktail foi usado pelos desportistas russos nos Jogos Olímpicos em Sochi.

Participação ativa do FSB no programa de doping
Após ser admitido no laboratório de Moscovo, Grigory Rodchenkov assinou o documento sobre a colaboração com o FSB, foi-lhe dado o nome de código “Kutz”. Ele tinha que preparar os relatórios ao seu curador da secreta russa, depois estes chegavam ao oficial do FSB da patente mais alta. O agente do FSB que mais visitava o laboratório era Evgeny Blokhin.

O FSB estava envolvido na troca de amostras em Sochi. Blokhin entrava no laboratório sob o disfarce do canalizador, oficialmente ele trabalhava para a empresa “Bilfinger”, que fazia manutenção do edifício. A comissão tem o depoimento de testemunhas que disseram que viram Blokhin no laboratório, à noite, quando os outros funcionários iam para casa. Rodchenkov também tem a fotografia dele, tirada no laboratório. Além disso, de acordo com Rodchenkov, ele se reuniu com oficiais de alta patente do FSB antes e durante os JO de Sochi, onde se discutiu o uso de substâncias dopantes.

O ministro Vitaly Mutko estava ao par de tudo
O "ministro-urina", Vutaly Mutko
Como conta Rodchenkov, em janeiro de 2015, depois da demonstração do primeiro filme [sobre o doping russo, exibido pelo canal alemão] ARD, ele escreveu um relatório ao FSB. Chamando a atenção ao facto de que, no caso ocorrerem os novos testes de atletas russos em competições internacionais, muito provavelmente, haveria os resultados positivos. Ele observou que no atletismo russo todos usam a dopagem, pois nem os treinadores, nem os atletas sabem como se preparar às competições sem o doping. O relatório chegou ao Vitaly Mutko e o ministro chamou Rodchenkov para discutir o documento.

Além disso, de acordo com Rodchenkov, ele tinha estado em várias reuniões com ministro Mutko em que discutiram os preparativos para os Jogos Olímpicos de Sochi. Nas vésperas dos JO, um dos “correios” entre o laboratório e o Ministério do Desporto, Alexei Velikodniy, preparou a lista de atletas que usam doping. O arquivo foi originalmente chamado de “Duchesse” – tal como o cocktail de doping.

* * *
Após a publicação do relatório da WADA, o Comité Olímpico Internacional afirmou que estava pronto para aplicar as “sanções mais duras” contra os implicados no programa de doping na Rússia. O presidente russo, Vladimir Putin prometeu que “os funcionários citados no relatório da Comissão como executores diretos serão suspensos dos seus cargos até que a investigação seja concluída”. Ao mesmo tempo, o porta-voz do presidente russo, Dmitry Peskov, disse que ministro Mutko não será suspenso do seu cargo, embora o relatório afirma que foi ele que ordenou a fasificação do teste do futebolista estrangeiro, ora anónimo.

Ler o texto integral do relatório da Comissão da WADA (em inglês; 2,43 MB; PDF).

Última hora

O Comité Olímpico Internacional informou que o ministro russo do Desporto, Vitaly Mutko não receberá a acreditação aos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro. Anteriormente, a Comissão da WADA emitiu um comunicado em que dizia que acreditação será negada a todos os funcionários mencionados no relatório da Agência Mundial Antidoping, informa Meduza.io  

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