sexta-feira, março 04, 2016

“Aeroporto” do Sergei Loiko. Capítulo VIII: Mishka – Professor

A guarnição ucraniana, cercada no aeroporto, suporta baixas pesadas. Blindados, enviados pelas forças armadas para evacuar os mortos e feridos, com muitas dificuldades rompem a barreira do fogo pesado dos separatistas, e das unidades regulares do exército russo, enviadas pelo Moscovo ao seu reforço.

Enquanto isso, dois pára-quedistas do grupo que defende o aeroporto, se voluntariam para recolher os restos mortais do membro da tripulação do blindado ucraniano, destruído e queimado, para embalá-los numa caixa e enviá-los à base, e de lá ao enterro em casa, quando e se aparecer o transporte, que eles chamam no seu jargão militar de “gaivota”.

@Sergei Loiko Todos os direitos reservados
Tradução portuguesa @Ucrânia em África

Ainda são muitos os tolos que ficam felizes com o canto bravo dos soldados.
Bulat Okudzhava «Oh, a guerra, ainda se arrastará durante anos»

18 de janeiro de 2015. Aeroporto de Krasnokamyanka
Quando estão descarregar tudo que é necessário, e tentam acomodar os feridos dentro do blindado ligeiro MTLB, Tritão e Professor correm pela pista de aterragem, saltando por cima de obstáculos e, instintivamente, se esquivando das balas – eles não posseum tantas vidas extra como num jogo de computador.
– Pare! É por aqui! – grita Professor, e eles congelam, agachados atrás do esqueleto carbonizado do blindado T-64, recuperando o fôlego.
– Lá está ele, o gajo do tanque! Como se estivesse vivo! – Professor aponta na direção dos escuros pedaços carbonizados de carne humana, dos quais se destaca um espesso osso amarelo quebrado.
Tritão coloca no chão a caixa de madeira dos RPG-26[1], a abre. Professor, usando as luvas de pano pega a coxa do homem do blindado, a atira na caixa. Eles fecham a caixa, pegam as laterais alças de ferro e em “um-dois-três” correm de volta.
A bala atravessa o antebraço esquerdo do Professor. Ele deixa cair a caixa sobre o concreto da pista, gemendo e praguejando.
Tritão rasteja até ele.
– Mishka, como estás? Onde é que levaste?
– Na esquerda! Ah-a-a-a-a! Car.lho! Teremos que mudas as mãos.
Mykhaylo se levanta. Eles, se agachando, pegam a caixa, e agora mudam dos lados, e correm novamente. A manga esquerda do Mikhaylo é preta de sangue. Ele, como um radiador perfurado deixa na pista de aterragem a pontilhada pegada molhada e escura.
Chegando ao carro, deixam cair a caixa. Mishka cai por perto, de face para cima. Respire alto, gemendo. Tritão se agacha sobre ele.
Deixe me ver.
Depois, Tritão! Amarre o gajo do tanque, ou vou morrer em vão!
Tritão procura por um quadro livre, movendo em direções diversas as mãos e os pés dos mortos, encontra com dificuldade, levanta a caixa com muito esforço e a amarra com o arrame preparado antecipadamente.
Agora, o homem do blindado voltará para casa, para junto à sua mãe, ou à esposa, ou à quem mais deverá ir um pedaço de perna de um soldado morto.
Professor se levanta para ajudar, e leva com a bala perdida no templo, diretamente abaixo do capacete. Está morto.
Mishka! Mishka! – grita Tritão, tentando um feitiço impossível.
Chama pelo Sergeich.
Sergeich vem correndo, tira o capacete, abana a cabeça. Mishka-Professor morreu, salvando a perna do homem morto do blindado.
Neste momento Stepan-Bander percebe que todos os feridos já não cabem no MTLB. Percebe também que este pode ser o último “gaivota” ao “continente”.
Ele conta os que ficaram de fora. Mais seis! O tiroteio em ambos os lados não cessa.
– Então, homens! Esta é a vossa última chance de ficarem vivos. Vão na blindagem! Se deitem ordenadamente. Sashko, traz do armazém os coletes prova de bala dos que morreram! Coloquem um colete adicional nas pernas, desde a cintura! Segurem bem o quadro! Vão, como se fosse num carro funerário. Retirem os mortos dos sacos, para ser melhor visível o que estamos à levar.
Os soldados, feridos e sãos, desamarram os sacos do quadro, puxam os mortos e os novamente amarram, de qualquer maneira, ao quadro e uns aos outros. Tritão chora, amarrando Mishka. Sangue quente escorrega pelo rosto do Mishka, pelos seus olhos abertos congelados, até aos braços do Tritão.
Tritão cai de joelhos, arranca o seu capacete, com a força o atira no betão, arranca a espingarda automática, dá um fortíssimo trombo no capacete, vira a cabeça para trás e grita, rasgando a voz:
– A guerra f.dida!!! Odeio!!! Odeio, car.lho! Odeio!!!!
Ele está histérico. Na guerra pode acontecer à qualquer um à qualquer momento. O ciborgue possui apenas uma vida, e não tem uma cabeça extra.
Sergeich, com uma mão abraça Tritão, que continua histérico, com outra coloca nele o capacete e traz lhe aos lábios o cantil com álcool, depois, ele próprio, faz um gole rápido e enxuga os seus olhos molhados com o dorso da mão.
Mecan está ao seu lado, bebe ansiosamente o café quente da caneca metálica. É a água da ração de emergência do Bander, para não adormecer no caminho de volta (água não chegou, ficou no blindado BMP queimado). A face está preta. Olhos – até é difícil dizer de que tipo. Não humanos.
Cossaco, me chama o quinquagésimo dos russos na frequência deles. Vamos negociar a trégua. Não há outra saída.
Bander quer falar diretamente com o comandante da brigada de pára-quedistas russos de Prstov que se entrincheirou no perímetro, ataca o transporte e apoia com fogo os ataques esporádicos dos separatistas e chechenos.
Poucos minutos depois, o vice-comandante, um rapaz robusto com um topete e nome da guerra Cossaco, informa que não há ligação.
– Então... Entendi, já mudaram a frequência ... Aybolit, pare de disparar, dispa o casaco. Vamos fazer a ambulância.
Nas costas do casaco do doutor Sergeich está desenhado um grande circulo branco com uma cruz vermelha no meio. Bander corta o casaco do Sergeich, o amara com a fita-cola amarela (amigo–inimigo) ao torto, mas longo pedaço do caixilho de ferro da janela. Não é uma haste? Mete toda essa obra num buraco na torre de metralhadora. Um dos feridos, que está deitado na blindagem, terá que a segurar...
Todos conseguiram se acomodar. Os vivos, deitados na blindagem, se fingem serem mortos, entre os cadáveres de verdade.
A última instrução dada ao condutor-mecânico Semenych.
– Olhe, Semenych, sem nenhuns empurrões. Flutuas lentamente, na primeira velocidade. O dia já está claro. Eles devem conseguir ver o tipo de viatura que temos, isso é, se não repararem na bandeira. Se dás um salto, vão vós queimar! E à ti, juntamente com todos! Me percebeste, herói?
– Entendi. De trote leve, como se for numa parada.
Mecan desaparece na escotilha. A viatura dá um salto inicial, de modo que alguns dos feridos quase voam ao chão. Os restantes acompanham com olhares a maquina mais incrível que viram até agora.
O blindado MTLB, carregado com armadura movediça dos vivos e dos mortos, lentamente rasteja na direção de nevoeiro que desaparece rapidamente.
Em que pensa cada um dos feridos na blindagem, agarrados ao metal frio da máquina ou à carne fria de mortos? Assusta só de imaginar o que eles têm na sua mente, que orações sussurram os lábios.
O nevoeiro se dissipa completamente quando eles saem por detrás da segunda manga do embarque à pista de aterragem. A bandeira com a cruz vermelha está segurada do lado correto. O tiroteio cessa.
– Vigésimo, vigésimo! Que car.lho se passa? Por que o objeto não foi trabalhado? Me informaram do movimento! – O coronel Sivko, comandante da brigada aerotransportada de assalto de Prstov, nascido na cidade ucraniana de Kherson, chama o comandante do batalhão.
– Camarada quinquagésimo, veja você mesmo. O objeto já está na zona da vossa visibilidade. Eles ainda têm uns quinhentos metros para andar. Aguardo pela ordem, – viola o estatuto militar o comandante do batalhão, major Ikonnikov. A ordem foi lhe dada há muito. Uma ordem bastante clara. Alvejar tudo o que se move ou não, pela pista, na direção ao aeroporto e de volta.
O coronel sobe ao parapeito do posto de controlo, leva os binóculos ao observador, ajusta a nitidez, baixa os binóculos:
– Mas que f.da?
Nunca antes tinha encontrado o equipamento militar deste tipo.
– Vigésimo, vigésimo! Não trabalhar o alvo. Um ou dois tiros de advertência ao ar, para que saibam que estamos aqui. Executar! – Sivko baixa o rádio, sai fora, entra no “GAS-2330-Tigre” e diz ao motorista apenas três palavras: – Para a cidade, car.lho!
Enquanto o carro salta nos buracos da linha de frente, levantando as ondas de lama e rosnando, o coronel tira do bolso do assento à sua frente o cantil precioso e sem pestanejar, faz um par de goles.
A guerra f.dida. Maldita seja! Odeio!
* * *
Nikolai Sivko, herói da Rússia, não gostava da guerra. Aos seus 45 anos ele deixou atrás das costas várias guerras, uma pior e mais maldita que outra. Sem nenhum outro trabalho na manga, ele fazia este, de forma absolutamente profissional. Mas essa guerra, como aqui, ele não poderia imaginar. Sim, a artilharia trabalhava como sempre, os soldados e oficiais executavam as suas ordens, se entrincheiravam, saiam aos reconhecimentos, atacavam, matavam, morriam. E um copo de vodca, numa tenda húmida à noite, habitualmente não entrava na garganta. Mas aqui, nesta guerra má (o epíteto mais suave nas conversas de todos os oficiais que ele conhecia), tudo foi diferente, desde o início.
* * *
Numa tarde quente de julho, nos arredores de Saur-Mohyla, onde os pára-quedistas ucranianos, pelo quarto dia consecutivo conduziam os combates prolongados de infantaria, mal retendo as forças superiores das tropas russas que de repente cruzaram a fronteira, o coronel Savinykh, o comandante da brigada aerotransportada de assalto das Forças Armadas da Ucrânia se preparava para enviar um grupo das forças especiais, para encontrar e recolher à base um ferido e um morto – os seus homens, batedores que caíram naquela manha numa emboscada. Esperava quando artilharia russa cessar o seu trabalho. Eles, já por uma hora alvejavam a sua posição, directamente do território russo. Na sua maioria, sistemas “Grad” e canhões de longo alcance de 152 mm. Foi estritamente proibido responder à artilharia russa.
Você o que, Savinykh, ficou f.dido?! Assim será uma guerra! Guerra, f.da, não é c.ralho canino! Você entende isso, coronel, com a sua cabeça idiota? – gritava ao telefone, o general, de modo que a poeira caia do teto cimentado da blindagem. – Estamos na Operação Antiterrorista, Savinykh! Entende, OAT, que se f.da a sua mãezinha! Repito pela última vez, especialmente, para os mais inventivos, car.lho! OAT f.dida! E mais nada, car.lho! Como me percebeu, coronel?
O coronel percebeu que desta maneira da sua brigada ficará apenas um lugar vazio. Mas tinha que combater, OAT, ou p.ta que a pariu.
Assim que artilharia russa cessou o trabalho, tocou o seu telefone celular.
“Esposa! Consegui a ligação. Mas que gaja teimosa ...”

Ola, Sasha. Como estas? – a “gaja teimosa” falou com uma voz rouca, algo familiar, masculina, definitivamente de um fumador.
Quem é?
Não chore, não se preocupe! As lágrimas não verte em vão! Melhor me beija, quando voltarmos dos treinos... – uma voz baixa cantou em resposta um verso memorável da canção do seu pelotão de formação na escola militar de Ryazan.
Estou, sim! Quem é? Quem é você? – A voz do Sasha de repente cedeu.
Sasha, car.lho, é Kolyan, o teu irmão das armas! Esqueceste como nós, em Ryazan, fazíamos cenas na escola preparatória? Como no f.dido túnel de Salang, morríamos sufocados, cuspíamos sangue, car.lho, como você me tirou de lá? Sasha, sou eu, Kolya!
Kolka! Kolyan! Vivo! Como você está? Cem anos, car.lho! Como você me encontrou? P.rra, não posso acreditar! Kolya – irmão! Onde você está?
Sasha, me ouça atentamente agora. Eu estou aqui, Sasha, aqui. Na sua frente. Tenho os seus, morto e ferido! Temos que falar. A destruída estação de água, na zona neutra. Dezasseis zero-zero. Sozinho. Desarmado. Fim de emissão.
Sasha passou estas três horas, sentado, congelado, sem se levantar, sem dando as ordens. Na cabeça lhe passou toda a sua vida. Sabe-se lá porque, especialmente se lembrava como corriam, numa companhia inteira pela picada florestal de areia branca, perto de Konstantinovo, pátria do Yesenin; como se atiravam de cabeça da margem íngreme, se despindo e descalçando, jogando fora as botas, calças, matando toda a vida em seu redor com o fortíssimo fedor dos panos que substituíam as meias, as armas mais letais de destruição em massa no mundo. Como saltavam aos gritos, risos e palavrões ao rio fresco, absolutamente azul... Como todos nadavam juntos, mas logo voltaram atrás, e apenas Kolyan nadou até a outra margem e se deitou exausto, sobre a areia quente...

E agora eles novamente, são divididos por um rio. Só que agora não é Oka absolutamente azul, mas o rio da morte, onde estão eles nas suas margens... Um contra outro.

Continua...
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[1]     RPG – granada reativa anti-tanque.

1 comentário:

Unknown disse...

Realidade terrível!