Tal como Holocausto e
Genocídio arménio mudaram as respetivas nações, o Holodomor moldou e tipificou para
sempre o arquétipo da nação ucraniana.
Holodomor bruscamente
mudou as normas incorporadas da ética social. Primeiramente disseminou-se o
clima de delação, apoiado e fomentado pelo poder Estatal. O que antes era vergonhoso, foi apresentado como um ato da consciência social. Os delatores eram
pagos, quem mostrava onde o vizinho escondia o trigo recebia 10-15% do achado como
prémio. Os quem não tinham nada para comer, quebravam o tabu e denunciavam o
vizinho. Isso desmoralizou tanto os camponeses, que no inverno de 1933 o simples
facto de ter algum alimento em casa era visto como sinal de prémio pela
delação.
Nas aldeias se enraizou
a desconfiança e inimizade. Parecia que o mundo ficou de avesso: um delatava
para sobreviver, outro para ajustar as contas. Atmosfera tornou-se tão
carregada, que os camponeses ficavam com medo do poder Estatal e dos vizinhos, tentando
antecipar-se na denúncia. Um camponês da província de Kyiv contou que abateu o
vitelo e entregou metade ao vizinho para não ser denunciado. O vizinho aceitou,
mas na mesma tarde foi denunciar o caso.
A escola usava as
crianças para delatar os seus próprios pais. Os professores formulavam as
perguntas disseminados nos testes para saber se alguém tinha trigo escondido.
Perguntavam aos alunos se as suas famílias têm algo para comer ou como os seus
pais conseguiam os alimentos. Os professores recebiam 10% dos alimentos achados
na base da denúncia. Praticava-se a seguinte forma de delação: após as férias,
os alunos deveriam escrever uma redação “Como os meus pais celebraram o feriado kulakiano/kurkuliano” (o Natal e a Páscoa eram considerados “invenções dos popes” e eram proibidos).
Mudanças na cultura
alimentar dos ucranianos
Antes do Holodomor não era
possível comer a carne dos cavalos, rás, cegonhas, pombos, corvos. Comer as
cegonhas era visto quase como sacrilégio, pois a lenda dizia que eles traziam
as crianças. No fim de 1932 já não fazia a diferença o que comer. Não havia pequeno-almoço,
almoço ou jantar, desapareceram alimentos tradicionais dos casamentos ou
enterros. Embora até as últimas as pessoas se agarravam às tradições
ucranianas. Uma mulher conta que a sua mãe guardou dois ovos para os pintar na
Pascoa, preparou um pequeno pão pascoal para celebrar a festa de Ressureição. Os ucranianos acreditavam que iriam sobreviver até o ano seguinte se conseguissem
comer a tradicional ementa pascoal.
Comiam coisas não
comestíveis: faziam a farinha dos ossos e peles de animais, comiam as solas dos
sapatos. Moíam a palha, misturavam a com restos de milho-miúdo e trigo-mouro, cascas
das árvores, cascas de batata e disso coziam o “pão”. Faziam a “sopa” de folhas
de beterraba. Preparavam as “panquecas” da comida de porcos, que retiravam do
kolkhoz.
Antes da década de 1930,
nas aldeias as casas se fechavam. As portas eram afixadas com uma pedra ou
vassoura, se os donos não estavam em casa, ninguém entrava. A comunidade era
intolerante com o roubo, por mais insignificante que fosse. O ladrão era levado durante um dia
inteiro pela aldeia com o produto do seu roubo ao pescoço. Durante Holodomor o
roubo deixou de ser visto como pecado, como vergonha. Sem roubar, não irás
sobreviver. As mulheres camponesas escondiam nas botas a beterraba ou algum
cereal. Com passar dos anos, o roubo no kolkhoz foi encarado como uma
compensação pelos dias-horas não pagos.
Holodomor e sua
influência na cultura e tradições
Apesar do Holodomor, os
casamentos continuavam a celebrar-se, mas sem seguir as tradições. Testemunhas
contam que na província de Vinnytsya numa cerimónia de casamento os convidados
comiam beterraba com leite. Antes, o casamento era celebrado durante uma
semana, a aldeia inteira era convidada para a cerimónia. Antes, o matrimónio era
impensável sem o casamento religioso, depois, simplesmente impossível. No
arquivo do Instituto de Estudos de Arte, folclore e etnologia da Academia de
Ciências da Ucrânia podemos encontrar o folclore da época:
Pararam todos de rezar,
Foram sem os padres se casar,
Sem os padres se
morrer,
Padres foram desprezados.
Os casamentos fartos
eram dos serviçais do poder. Mas facilmente se transformavam nas bebedeiras com o acompanhamento musical. Quando, após o fim do Holodomor, as tradições
matrimoniais foram ressuscitando nas aldeias, vários dos seus elementos se
perderam. Uma mulher conta que em 1934 no seu kolkhoz foi organizada a festa
do fim da safra. As pessoas já tinham o que comer, mas todos estavam calados à
mesa. Finalmente, alguém começou a cantar e as pessoas simplesmente choraram.
As tradições ligadas ao
enterro
Tradicionalmente, nas
aldeias ucranianas um morto era sepultado no terceiro dia, com a presença do padre
e era feita a missa em memória do defunto. Durante Holodomor, os mortos eram atirados numa
vala comum ou na melhor das hipóteses eram colocados numa espécie de caixão, se
a família ainda tivesse algum homem vivo. As mulheres levavam os seus defuntos
em sacos, embrulhados em panos. Colocavam vários mortos na mesma campa, as
pessoas não tinham as forças de abrir a campa própria. No inverno de 1933,
quando a situação se tornou especialmente terrível, as pessoas eram enterradas
na neve. Na primavera do mesmo ano estes corpos foram profanados pelos animais
vadios…
Quase todos os kolkhozes criavam o posto de recolhedor de cadáveres. Os mortos eram procurados nos
quintais, colocados na carroça e levados até o cemitério. Sepultavam 10-20
pessoas em valas comuns. Os recolhedores recebiam 300-500 gramas de pão por
dia, era uma maneira de sobreviver a fome. Por vezes eles despiam os mortos e ficavam com as suas roupas. Existe o testemunho do caso na província de Mykolaiv quando um
aluno desenterrou o seu professor para levar o fato dele e trocar pelo pão. Quando
todos os moradores de uma aldeia morriam, aldeia era marcada, todas as suas casas
passavam pela “limpeza”. Depois aldeia era repovoada com os colonos da Rússia e da Belarus. Eles recebiam alojamento e emprego. Mas as casas, onde morreram as
pessoas, emitiam um cheiro específico. Vários recém-chegados fugiam. Eram capturados
e devolvidos à força.
Mito de canibalismo
Os arquivos do Serviço
de Segurança da Ucrânia (SBU) mostram que em toda Ucrânia foram registados cerca
de 2.000 casos. Por isso, dizer que durante Holodomor o canibalismo era massificado
e usual é absoluta inverdade. Casos de canibalismo e necrofagia, na sua
maioria, tinham lugar na primeira metade de 1933 e estavam claramente ligados
aos distúrbios psíquicos. As pessoas já não sabiam o que estavam a fazer. Houve
casos em que os canibais eram linchados pela população, pois as suas vítimas
eram, geralmente, as crianças. Na aldeia de Samhorodok, uma mulher que comeu os
filhos foi enforcada. As pessoas percebiam que os culpados estavam totalmente
transformados, existia até um ditado: “O nosso vizinho já ficou louco e comeu
os seus filhos”.
Em 1933 também houve
uma onda dos suicídios, um pecado mortal na ética cristã. Geralmente pessoas
se enforcavam. Uma mulher da aldeia de Voskresenske na província de Kyiv não
aguentou ver os seus filhos a pedirem-lhe a comida. Um homem na província de Vinnytsya
contou que ficou tão fraco, que já não conseguiu rasgar a sua camisa para fazer
a corda. Houve casos em que se suicidavam até os ativistas pró-poder, eles não
aguentavam o assédio das chefias distritais que os obrigavam a retirar os
alimentos dos seus conterrâneos.
Sobre a autora-investigadora:
Desde março de 2016 Olesya Stasyuk (no meio) é a nova Diretora do Museu Nacional «Memorial das vítimas dos Holodomores da Ucrânia» |
Assistir a intervenção do Prefessor Dr. Andrea Graziosi da Universidade de Nápoles: “Estaline e a fome como uma ferramenta para dominar
o campesinato ucraniano”:
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