Não sei se a propaganda
nazi produzia os filmes que exaltavam as vivências laborais em Auschwitz. Mas a
propaganda soviética produzia as comédias alegres sobre o dia-a-dia dos seus campos
de concentração.
O Canal
Mar Branco - Mar Báltico (Belomorcanal) é um projeto técnico de estalinismo
inicial, superando os canais do Panamá e do Suez na sua extensão, aberto em
tempo recorde de 20 meses. A sua abundante mão-de-obra escrava foi fornecida
pelo campo de concentração soviético de Belbaltlag, que no pico da
funcionalidade, em dezembro de 1932, encarcerava 107.900 pessoas.
Entre os prisioneiros havia
muitos do delito comum, mas também um grande número de prisioneiros políticos.
Na sua maioria eles eram pessoas inocentes, camponeses acusados de serem “kulaks”,
privados das suas propriedades e colocados nos campos de trabalhos forçados.
Havia também diversos sacerdotes, vários “inimigos de classe”, representantes
da intelligentzia, principalmente os engenheiros e economistas, que desde 1928
eram falsamente acusados de sabotagem e condenados como “sabotadores”. As
condições da vida em Belbaltlag eram sub-humanas: nas condições climatéricas
pré-polares e recebendo a alimentação parca, os prisioneiros eram sujeitos às
normas da produção bastante altas. O número total de vítimas é calculado entre
50.000 a 100.000 pessoas.
Literatura e propaganda no período estalinista
O eslavista alemão Joachim
Klein, no seu artigo “Belomorkanal. Literatur und Propaganda in der Stalinzeit”
(Belomorcanal: literatura e propaganda no período estalinista), publicado na
revista “Zeitschrift für slavische Philologie”, № 55(1), 1995-1996, p. 53-98,
analisa o papel desempenhado pela literatura soviética na propaganda
estalinista, dissecando a comédia (!) do Nikolay Pogodin “Aristocratas”,
dedicada à construção daquele canal.
Dramaturgo e jornalista
do “Pravda”, Nikolay Pogodin (1900—1962) fez o seu nome exaltando as virtudes
da industrialização e dos primeiros planos quinquenais soviéticos. Na carta à
esposa escreve: “… Foi incumbido de escrever uma peça cinematográfica ou
cenário literário sobre Belomorcanal… Deram me um dia para pensar. Pensei. E porque não”.
Mikhail Bulgakov, o
autor do “Mestre e Margarida”, declinou a proposta semelhante e se recusou a visitar
o canal. Pogodin, por sua vez, já produziu uma comédia teatral sobre a Fábrica
de Tratores Estaline (1930) e uma outra sobre a vida alegre de kolkhoze (1934).
Ele encarou a proposta – obrigação de escrever a comédia sobre a vida de campo
de concentração como mais um trabalho cotidiano. Escreve o guião cinematográfico
“Prisioneiros” e a peça teatral “Aristocratas”. O gênero é mais uma vez
comédia, pois como ensinava o camarada Estaline: “Viver se tornou melhor,
camaradas. Viver se tornou alegre” (discurso perante os stakhanovistas em 17 de
novembro de 1935).
É claro, Pogodin não
era único que dedicou o seu talento à exortação do “realismo socialista”. Ele
mesmo afirma que Comité de Repertório (departamento da censura teatral) recebeu
cerca de 200 peças dedicadas ao Belomorcanal. Mas a obra do Pogodin foi uma das
poucas que chegou à exibição teatral nos diversos palcos soviéticos.
A estreia se deu em
dezembro de 1934 no Teatro Realista de Moscovo. A segunda encenação teve lugar no
Teatro Vakhtangov em maio de 1935. A esposa do Mikhail Bulgakov, Elena,
caraterizou a obra como o “hino à GPU”. A peça foi vista pelo Lazar Kaganovich,
pelo ex-chefe do OGPU, o comissário do NKVD Guenrikh Yagoda, pelo chefe do
campo de concentração do novo canal Moscovo – Volga.
Em 1936 vários teatros
de Moscovo, Leninegrado e outras cidades mostram a peça em cartaz. Mas a
segunda onda do terror massificado já estava à porta e o regime soviético
pretendia mudar o foco da estratégia propagandística. Centenas de milhares de
detidos já não são “kulaks” ou “inimigos de classe”, são membros do partido e o
tema de campos de concentração rapidamente se torna incómoda. O mesmo se pode dizer
sobre a propaganda do “novo forjamento” (reeducação), com a sua premissa de
reconciliação e de esperança. O livro é retirado de circulação e a peça deixa
os palcos.
A situação muda completamente
após 1956, quando no XX Congresso do PCUS, Nikita Khrushev denuncia os crimes
do Estaline. A URSS vive a nostalgia pela alegada imaculidade dos primeiros
anos pós-revolucionários, quando o socialismo ainda estava livre de “culto de
personalidade” e outras “distorções”. Um dos iniciadores deste “reencontro às
origens” é Bertolt Brecht, que visitou Moscovo em maio de 1955. A peça do
Pogodin é traduzida em alguns línguas estrangeiras e encenada em Paris, Londres
e Oslo.
Peça da propaganda estalinista
A comédia possui 48 personagens,
o seu foco didático é criado pelas sentenças que marcam claramente a fronteira
entre o bem e o mal. A construção do Belomorcanal é apenas o pano de fundo. O
elenco principal é composto por diversos criminosos: assassinos, ladrões e
prostitutas, eles desdenham o trabalho, são “aristocratas” da peça. Um deles é
herói-individualista, Constantino-capitão, aventureiro com traços de salteador
nobre. O contraste efetivo com o mundo criminal é feito pelo núcleo de
“sabotadores”, os representantes da intelligentzia do regime pré-revolução. Os
grupos são descritos como inimigos hirtos do poder soviético. No início também são
inimigos entre si. No final feliz eles se reúnem em comunhão, se tornando os
cidadãos soviéticos leais. O principal sentido ideológico da peça: estamos
perante uma sociedade sem classes sob a bandeira do trabalho socialista.
Para o final feliz
contribui sobremaneira a pedagogia inteligente do OGPU (desde 1934 NKVD). O principal
chefe do OGPU encarna em si todo o poder soviético, ele não tem nome, é conhecido
apenas como Chefe. Durante horas ele conversa com a criminosa Sónia para a
colocar no bom caminho.
A peça pode ser
considerada um melodrama socialista. O amor entre Constantino-capitão e a prisioneira
– pequeno-burguesa é destruído por causa dos preconceitos sociais. Vários
prisioneiros choram: “sabotador” olhando para o retrato da mãe, assassina Sónia
não consegue falar por causa dos sentimentos, Constantino-capitão interrompe o
seu discurso para limpar as lágrimas. Criminoso Alexei lê os versos compostos
por ele, tocantes pela sua simplicidade, agora ele é “novamente nascido” e
“chora de felicidade”.
Ler o artigo na totalidade:
Ler o contraditório do Varlaam
Shalamov: “A Sangue gatuna” (1959)
Ver o filme
“Prisioneiros” (1936), baseado na peça do Pogodin e com guião da sua autoria.
Uma comédia alegre sobre o dia-a-dia do campo de concentração soviético.
Ler a peça:
http://www.oldgazette.ru/lib/pogodin/05.html
(edição de 1948)
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