Apesar a fé quase
religiosa dos apologistas de estalinismo, as repressões em massa dos anos 1930-1940
ceifaram não apenas a cúpula do partido comunista, mas exterminaram milhões de
vidas de cidadãos absolutamente apolíticos, transformando os em “lascas” do
terror soviético quer no longínquo GULAG, quer nos locais de extermínio massificado,
algures perto da sua própria casa.
Em cada capital
distrital daqueles tempos, milhares de pessoas se transformavam em vítimas das
repressões estatais massificadas. Para a execução das penas e ocultação
apressada dos seus corpos, de propósito se alocavam os territórios nos
subúrbios das cidades, longe das testemunhas. Mas ocultar totalmente estes “locais
secretos” era impossível, devido à envergadura do terror contra a população
civil, que ultrapassava todos os limites imaginários.
Os moradores da
província ucraniana de Donetsk apontavam o campo de Rutchenkovo como um destes
lugares, situado no bairro de Kirov, na cidade de Estalino (atual Donetsk). No fim
de 1988 – início de 1989, os ativistas dos grupos da defesa dos direitos
humanos, “Donbass-88”, grupo estudantil “Pluralismo”, sociedade “Memorial”
local, enviaram os inquéritos às instituições do poder estatal perguntando sobre
a existência possível das valas comuns no campo de Rutchenkovo. Todas as
instituições, incluindo KGB local responderam que “não possuíam as informações”
ou diziam “informações não confirmadas”.
Estranhamento, na
segunda metade de 1988, o Comité executivo da cidade de Donetsk alocou o mesmo
território para o desenvolvimento da cooperativa de garagens “Têxtil” (na URSS
havia grande défice de garagens para as viaturas particulares). Era difícil de
acreditar que o poder municipal não tinha informação sobre o uso que era dado à
este local no passado.
Na época era
simplesmente impossível consultar os “arquivos especiais”, por isso ativistas
pediram os moradores dos arredores compartilharem as suas memórias sobre aquela
região. Uma parte dos testemunhos foi gravada, o jornal local, “Gorniatskaya
Slava” (Glória Mineira), publicou o artigo sobre os segredos guardados pela estepe
de Rutchenkovo.
As testemunhas contaram
que desde meados da década de 1930, um murro de forma retangular, de dois-três
metros de altura, cercou uma parte da estepe. O murro possuía arrame-farpado, existia
uma torre com o guarda armado, no período noturno o campo era vigiado pelas
patrulhas caninas. Os moradores locais sabiam que aqui foram executados os “inimigos
do povo”. As pessoas eram transportadas diretamente do edifício do NKVD em
Donetsk nos camiões conhecidos popularmente como “corvos negros”. Uma parte das
vítimas já estava morta, outros eram trazidos para a execução. No território foram
abertas as valas com o cumprimento de cerca de 100 metros, que eram preenchidos
com os corpos dos executados. Uma das valas foi escavada na primavera – verão de
1989, praticamente em cima da construção das garagens, os ativistas foram
informados que alguns proprietários mais apressados encontravam as ossadas e as
despejaram na vala de drenagem mais próxima.
Mas as testemunhas também
contaram que autoridades soviéticas executaram os feridos do seu próprio
hospital militar, localizado no hospital comum da cidade № 24, mesmo nas
vésperas da ocupação nazi da cidade. Provavelmente, o mesmo destino foi dado
aos estudantes das escolas de aprendizagem fabril e operária (FZU), filhos dos “inimigos
do povo”, que não conseguiram ou não quiseram se evacuar.
Todos estes testemunhos
terríveis necessitavam a confirmação no terreno, perante apatia total do poder
estatal e municipal local. Em abril de 1989, os ativistas mal começando a
cavar, descobriram as diversas ossadas massificadas. O procurador provincial, chamado
para o local, “celebrizou-se” com a frase: “Mas não serão ossadas dos cães?” Os
arqueólogos e antropólogos presentes confirmaram, as ossadas eram humanas. A
procuradoria provincial abriu um caso criminal, começou a trabalhar a comissão
oficial de inquérito.
Apesar da cobertura oficial,
a força principal de escavação era constituída pelos estudantes da faculdade de
história da Universidade de Donetsk, ativistas e seus amigos. O transporte,
alimentação e ferramentas eram assegurados pela municipalidade local.
Durante as escavações
foi encontrado um grande número de haveres pessoais: carteiras, escovas de
dentes e as ossadas de mais de 500 indivíduos. A sua morte foi definitivamente violenta,
os crânios com perfurações das balas, um grande número das balas espalhadas.
Eram encontradas as diversas garrafas de bebidas alcoólicas, principalmente a
vodka, sepultadas juntamente com os corpos. As datas de fabricação eram anteriores
ao início da guerra entre Alemanha nazi e URSS. Não era crível que a bebida era
servida aos executados para os acalmar, tudo indicava que os carrascos precisavam
aumentar a sua “coragem”.
Numa das valas foram
encontrados os restos humanos queimados, sentia-se perfeitamente o cheiro de querosena.
Encontravam-se muitos haveres pessoais: lâminas de barbear, distintivos de
mineiros, crucifixos, pentes, calçado masculino e feminino produzido na fábrica
“Triângulo Vermelho”. A presença das escovas de dentes indicava que as vítimas podiam
não saber da execução futura. Numa das escovas estava escrito o apelido
Kozlovskiy, num porta-cigarros lia-se claramente “Pokarev V. D.” A investigação
apontou que o porta-cigarros podia pertencer ao engenheiro mineiro da cidade de
Kriviy Rih, vítima da repressão soviética.
Mais tarde, o grupo das
escavações aproximou-se à resolução da questão mais gritante, execução dos
soldados feridos e dos estudantes das escolas FZU, filhos de “inimigos do povo”,
ocorrida em outubro de 1941, nas vésperas da ocupação da cidade de Donetsk
pelos nazis. A verdade terrível já era contada pelos moradores locais, mas nem
todos queriam acreditar nela, por causa do aproveitamento da tragédia feita pelas
autoridades nazis após a tomada da cidade em 1941.
A imprensa generalista ucraniana,
provincial e local não ousou a contar sobre a execução dos soldados do Exército
Vermelho efetuada pelo NKVD. Apenas o jornal “Gorniatskaya Slava”, com a
tiragem de 2.000 exemplares, publicou a recordação de um testemunho que no
outono de 1941 viu “soldados soviéticos mortos, alguns amputados, ao seu lado estavam
muitas muletas”. Havia testemunhos de dezenas de outros moradores, que
confirmavam a informação.
No verão de 1989, 48
anos após os acontecimentos trágicos, o grupo de escavação desenterrou vários
objetos caraterísticos de um hospital militar: ligaduras ensanguentadas,
membros engessados, máscaras de oxigénio, loiça sanitária da época. Num buraco
à parte foram encontrados os restos das camisas, muito parecidas com as
uniformes usadas nas escolas FZU…
Em 4 de julho de 1989, o
jornal “Pravda”, órgão central do PCUS, publica o artigo crítico e bastante
honesto do seu correspondente ucraniano, Glotov, “Lá onde decidiram construir
as garagens…” O jornalista visitou o local das escavações, falou com
testemunhas, com representantes do poder municipal, entrevistou o investigador
judicial e o perito da medicina legal. O artigo não mencionava os militares
fuzilados, mas dizia abertamente que Rutchenkovo é o local das repressões em
massa na província de Donetsk. Glotov criticava KGB provincial pela falta de
cooperação na investigação do caso criminal e criticou o poder estatal pela
burocracia e falta de profissionalismo. O artigo até mencionava o número total
das vítimas das repressões na província de Donetsk na década 1930 – 40.000
pessoas. Embora o número mais tarde foi contestado, mas fornecido pelos “órgãos”
locais não podia ser exagerado, mais certo que o número das vítimas das
repressões era maior.
Segundo a lógica
partocrática soviética, o artigo do “Pravda” foi um poderoso sinal de cima para
baixo para os órgãos locais do poder estatal. O caso foi divulgado na televisão
ucraniana, Comissão da cidade de Donetsk reconheceu o facto da existência da
sepultura massificada…
No entanto, muito em
breve, a mesma Comissão decidiu terminar as escavações e começar a transladação
dos restos mortais descobertos. Seria impossível que uma decisão daquele tipo
foi tomada sem consentimento de Moscovo, pois o caso foi recentemente e
amplamente divulgado. Os ativistas ficaram convencidos que a principal razão
dessa decisão tinha a ver com o caso dos soldados e estudantes de FZU
executados. As escavações e os estudos do caso eram desde início muito mal
vistos pela Direção provincial do KGB.
No dia 16 de setembro
de 1989 foram solenemente transladados os restos mortais de 540 vítimas. No
comício popular estavam presentes os representantes do poder local, membros da
sociedade Memorial, representantes dos estudantes que participaram nas
escavações. Os oradores diziam que o local da tragédia deveria preservar as
memórias das vítimas do terror estalinista. Mas apenas 16 anos depois, em 2005,
no Dia da Memória das vítimas do Holodomor e das repressões políticas na Ucrânia,
naquele local foi inaugurado o monumento em memória dos cidadãos que se
tornaram as “lascas” anónimas na tentativa do regime soviético “com a mão de
ferro empurrar a humanidade à felicidade”.
Em 2007, o autor destas
linhas visitou novamente o local. O campo de Rutchenkovo tinha um ar descuidado
e abandonado. Aqui e ali foram abertas as pequenas hortas, a cooperativa de
garagens se separou do monumento com um murro de concreto. O cemitério local se
aproxima cada vez mais. Um grupo de jovens desocupadas bebia e fumava ao lado
do monumento, fugindo antes de as puderam perguntar se elas faziam a ideia da
história do local. O céu sobre o campo era tenso e desassossegado…
Fonte
Sem comentários:
Enviar um comentário