segunda-feira, fevereiro 20, 2012

“Eu quero viver”: os diários da estudante soviética

Os diários da estudante soviética dos anos 1930 têm aceitação enorme no Ocidente, a sua autora é chamada de “Anna Frank soviética”. Na Rússia, a história da menina, que por causa do seu diário pessoal foi presa no GULAG é praticamente desconhecida. Ninguém quer saber.

Na (aula da língua) russa eu quase não escutei nada, uma força mágica desviava os meus olhos até a primeira carteira, ao lado da janela, até o perfil claro do Liovka, e eu, rapidamente passando de objecto para objecto, de repente, levantava os meus olhos para ele, sem parar, e assim sem fim. Ele, mais e mais vezes olhava para a janela, as vezes para o professor e raramente para o nosso lado”. Isso foi escrito no seu diário nos anos 1930, pela estudante Nina Ligovskaya. Este tipo de banalidades são escritas em todos os tempos, quer no caderno estudantil, quer numa postagem privada do blogue, por todas as meninas apaixonadas por colegas da escola. Mas nem todas elas vêem as suas casas revistadas. Nem todas as meninas são deportadas para o GULAG por causa dos seus diários secretos.
Canalhas bolcheviques
Nina manteve o diário entre 1932 e 1937. A filha do prisioneiro político, ela odiava o regime totalitário. Mas aos 13 anos, como é próprio para uma pessoa desta idade tão importante, analisava todo e qualquer aspecto da vida quotidiana: coisas da escola, prisões dos amigos, o seu próprio crescimento, foxtrote, encanto das meninas pelo descobridor árctico mais bonito.
Lugovskaya foi detida quando completou 17 anos. Foi lhe incriminada a conspiração com o intuito de assassinar o líder do partido, acusação baseada nas linhas que Nina escreveu após a recusa oficial de emitir o passaporte para o seu pai: “Alguns dias eu sonhava durante horas como vou mata-lo. As suas promessas, a sua ditadura, georgiano vicioso que mutilou a Rússia. Como isso foi possível? Grande Rússia, grande povo acabou nas mãos de um patife”. Algumas paginas para frente, a autora, com  a mesma fúria adolescente exclamava: “Aulas, meu deus, tantas aulas. Canalhas bolcheviques! Eles absolutamente não pensam nos meninos, não pensam que nós também somos pessoas”.
Será que Nina se preocupava com o facto do que a sua escrita poderia ser descoberta? Parece que sim. Na casa do inimigo do povo constantemente se realizavam as buscas. Mas as preocupações da menina com o seu diário eram tão ingénuas: “E se... ele será encontrado por acaso, vão reparar os palavrões sobre Stalin. E ele cairá nas mãos dos bufos. Vão o ler, se rir sobre o meu delírio amoroso”. Assim aconteceu. Foi achado. O seu primeiro leitor foi o investigador do NKVD – com um lápis vermelho ele sublinhou as afirmações subversivas, anti-soviéticas. [...]
Sem nenhuma piedade o lápis vermelho reparou o descontentamento com os preços: “60 copeques – um quilo de pão de trigo! 50 copeques – litro de petróleo (de iluminação)! Moscovo resmunga”, não deixou passar os testemunhos da fome: “Tenazmente e sem fim, flúem os refugiados para as grandes cidades. Cem vezes os mandavam de volta, em longos comboios para lá, para a morte certa”. Foi reparado até o entusiasmo insuficiente: “Não participei no comício, nas vésperas deitei-me tarde e não queria acordar cedo”. E claro, não seria possível não assinalar a passagem: “Na alma, de repente, se levantou toda a maldade e irritação contra aquele que me levou o pai... Ohm, bolcheviques, bolcheviques! Até onde vocês chegaram, o que vocês fazem?
Nos interrogatórios a estudante foi obrigada a reconhecer que “agudamente hostilmente é orientada conta a liderança do Partido Comunista de Toda a União (bolchevique), e em primeiro lugar contra Stalin”. A razão também foi achada rapidamente – filha queria vingar o seu pai. No processo ficou arquivado a sua confissão ingénua, claramente escrita sob o ditado: “Eu pensava apenas encontrar Stalin ao lado do Kremlin e fazer o atentado com um disparo de revolver, sabendo antecipadamente, quando ele sai do Kremlin”.
Quase 20 anos mais tarde, após a cadeia, os campos de concentração e degredo, Nina Lugovskaya irá procurar a reabilitação e na carta ao Khrushev explicará, que as frases do seu diário adolescente foram apresentadas como as provas da acusação, que os interrogatórios foram muito brutos, com ameaças, incluindo do fuzilamento. Tudo isso a levou ao estado, quando já “não fazia sentido o que assinas, (desejando) apenas que tudo termine o mais rapidamente possível”.
Três tentativas de editar o seu livro      
Os três cadernos estudantis foram descobertos anos após a sua morte, no início dos 2000. E estes cadernos a tornarão famosa. “Anne Frank soviética” – assim ela será chamada em todo o mundo. O seu diário foi traduzido em 20 línguas, teve várias reedições, foi recomendado para a leitura nas escolas, as crianças no estrangeiro participam nos concursos literários sobre o tema Nina Lugovskaya. E apenas na Rússia, a vida da estudante – prisioneira política será conhecida só por alguns especialistas.

O diário e as cartas da Nina, foram achadas pela Lia Dolzhanskaya, funcionária da sociedade dos direitos humanos Memorial, no Arquivo estatal da Rússia. “Alguns dias eu estava sentada no arquivo frio e mal iluminado, lia estes cadernos e não conseguia parar. Queria muito que outros também os leiam”. [...]
Os funcionários da Memorial, que copiaram manualmente página após página dos cadernos da Nina Lugovskaya, não conseguiam conter as lágrimas. Menina troca os bilhetinhos nas aulas da geografia e ri-se, quando o sistema impiedoso já se prepara para triturar o seu destino – o pai da Nina será fuzilado, mãe, como esta anotado no processo, durante a sua detenção gritava em voz alta: “Até a vista, adeus, meninas”, tentando com os gritos chamar a atenção das testemunhas. A mãe morreu em Magadan, as irmãs também passaram pelos campos de concentração. [...]
Porque sobreviveu o diário – para mim é um enigma, — se surpreende o historiador Dr. Iaroslav Leontiev, que se tornou o primeiro perito dos documentos da Nina Lugovskaya. As semelhantes provas documentais geralmente eram destruídas. Mas talvez, estremeceu a mão do investigador. Ou talvez, era a vontade de Deus”.
Todos os que conviviam com a escrita da Nina diziam a mesma coisa: “As pessoas devem saber disso”. Por alguma razão se pensava que os russos, sabendo do processo louco “Estado contra a criança”, vão entender algo novo sobre a sua história. Em 2001, os diários foram editados pela Memorial, com a tiragem efémera de 500 exemplares e rapidamente se esgotaram entre os seus. Em 2003, a editora Natalia Perova, aos seus próprios custos preparou a segunda edição – “Quero viver! Diário da estudante soviética”. 1000 exemplares dificilmente se vendiam durante 3 anos, e no fim, a maior parte dos livros foi oferecida. Quando o livro foi proposto às editoras ocidentais, a reacção foi momentânea. Sobre o livro começaram escrever na imprensa, o livro foi traduzido. Durante os anos o livro continua ter uma popularidade enorme na Inglaterra, Itália, Alemanha, Japão, diversos outros países.
Em 2010, na Rússia foi feita mais uma tentativa de publicar os “Diários”, desta vez na editora RIPOL Classic (ISBN 9785386018436). Mas alguns meses após a sua publicação outra vez se constatou que os leitores russos, na sua massa, não se interessam por livros deste tipo.
Natalia Perova: “Creio que a nossa gente simplesmente não quer vascular o seu passado terrível. Isso é demasiadamente doloroso, demasiadas revelações foram feitas ultimamente”. O sociólogo Boris Dubinin também acha que mais uma verdade sobre o Grande Terror não interessa aos cidadãos russos: “É uma situação traumática para a consciência colectiva, quando os russos na actualidade evitam os traumas de todas as maneiras”.
Segundo os dados do estudo de opinião conduzido pelo Centro Levada, dois terços dos respondentes estão prontos até de imaginar a época estalinista como algo positivo. “O Poder e a imprensa de todas as maneiras favorecem isso – os esforços da propaganda também são direccionados para não vasculhar a história, não reconhecer a responsabilidade pela história. Não é por acaso que ultimamente foi tão esbranquiçada a figura do Stalin”.
Os diários da Nina Lugovskaya, na opinião do Boris Dubinin, são desconhecidos na Rússia também porquê na sociedade russa não há interesse pelo indivíduo: “Somos acostumados usar o retracto panorâmico e heróico – grande passado de um grande país. A escrita pessoal de uma pessoa pequena, da estudante, claramente perde em termos de comparação”.

Escritora russa Lyudmila Ulitskaya escreveu o prefácio do livro em que fala directamente ao seu leitor: “Nas fotos Nina tem uma cara infantil, confusa. Milhões destas fotografias estão guardadas nos arquivos. Mas todos eles morreram: uns com a bala, outros no campo de concentração, outros no degredo. Nina Lugovskaya teve sorte. Ela saiu do GULAG. Realizou o seu sonho infantil, se tornou pintora, viveu até a velhice, e poucos que a rodeavam sabiam sobre o seu passado. Se calhar, nem ela própria se lembrava dos seus diários, retirados durante a busca. Mas eles sobreviveram. Eles estão aqui. Eles são para nós”.
Para nós?
Fonte:
http://www.kommersant.ru/doc/1353424
Em Portugal: Nina Lugovskaia, “Eu quero viver”, Casa das Letras, 2005, Cruz Quebrada, ISBN: 9789724616162

1 comentário:

Anónimo disse...

O avião presidencial ucraniano:

http://noticiasdaucrania.blogspot.com/2012/02/modestia-de-um-presidente.html

revolta dos ucranianos contra seu presidente:

http://noticiasdaucrania.blogspot.com/2012/02/revolta-de-um-povo-ou-um-povo-que.html

análise do jornalista brasileiro sobre a uniao eurasiana:

http://www.midiasemmascara.org/artigos/globalismo/12167-o-futuro-que-a-russia-nos-promete.html