O cinema soviético, tal como o resto da cultura eram dominados pela ideologia do realismo socialista. Apenas na literatura, ao pedido dos camaradas cubanos, foi aberta uma brecha, sob a forma de realismo mágico, onde se encaixavam Gabriel Garcia Marques e outros camaradas – escritores (isso é, sem tirar o mérito ao génio do escritor colombiano).
por: Jest Nas Wielu
As “balizas” ideológicas permitiam aos cineastas soviéticos enredar pelas comédias, género bastante apreciado pelo público e bem conseguido pelo realizador Leonid Gaiday (“Kidnapping, Caucasian Style” (1966) ou “The Diamond Arm” (1968)), pelos filmes sobre o “tema laboral” (meio caminho andado aos prémios, mas fuga certa do público) ou então pelos filmes de guerra (guerra civil de 1918-1924, “grande guerra patriótica” de 1941-1945 ou mais raramente a guerra soviético – japonesa, por exemplo “Cherez Gobi i Khingan” (1981), co-produção da URSS, RDA e Mongólia). Outras guerras onde URSS participou de maneira semi-clandestina, caso da guerra civil na Espanha ou as guerras no 3° mundo eram tabus para os cineastas, vá – lá saber que segredos incómodos poderiam ser revelados sobre os tópicos tão sensíveis como o “dever internacionalista” soviético.
Os géneros como terror, erotismo, absurdo ou as distópias eram banidos do imaginário soviético, dai o primeiro filme distópico “Kin-dza-dza” (1986), a primeira fita erótica “Pequena Vera” (1988) e o primeiro terror “Os cães” (1989) apareceram já após o início da Perestroica. Os filmes de acção tinham a tarefa árdua de combinar no seu enredo o patriotismo, a ideologia e os aspectos do politicamente correcto vigente. Por exemplo, o “eastern” “O Sol Branco do Deserto” conseguiu combina-los ao muito custo. Já o campeão absoluto das bilheteiras (em 1980 foi visto por 90 milhões de pessoas), “Os Piratas do Século XX” (1979) foi arrasado na imprensa soviética com os argumentos de transmitir “a mensagem absolutamente errada”, se dirigir “fora do nosso caminho”, usar “técnicas artísticas ideologicamente alheios ao cinema humanista”, etc. Um navio mercante era capturado pelos piratas e os marinheiros usavam a violência para defender a tripulação e a carga. Eu não via nada de mal nisso e até adorava ver como “os nossos” aplicavam os golpes do carate aos mauzões. Milhões de jovens e adolescentes achavam o mesmo e viam o filme 5, 10, 20 vezes... O mesmo tipo de crítica, só que mais acentuada foi mais tarde feita ao filme “Viagem solitária” (The Detached Mission, 1985), onde pela primeira e talvez última vez foi demonstrado que o inimigo da URSS são os EUA.
Diz a estatística soviética, que em 1961, todo o cidadão da URSS, em média, foi ao cinema 17 vezes por ano, que tirando os bebés e os velhotes dava uma média bastante razoável. Engraçado, mas os (as) directores (as) das salas de cinema foram as primeiras pessoas na URSS a experimentar uma espécie de capitalismo. Todas as salas tinham um plano fixo de X mil rublos por mês, trimestre, semestre e ano, a conseguir, à custa da venda de bilhetes. Quem conseguia “fechar” o plano, poderia contar com os prémios e outros benefícios, quem não conseguia, comprometia a sua permanência no cargo. (Todas as empresas soviéticas tinham os planos semelhantes, mas as unidades produtivas só eram responsáveis em produzir e não em vender os seus produtos. Daí não havia problema algum, se os produtos não eram comprados mais tarde. Os cinemas eram diferentes, caso não exibir os filmes vistosos não conseguiriam angariar o público. Embora por vezes enchiam as salas de cadetes das escolas militares, que eram enviados pelas suas chefias ao troco de uns acordos comerciais mutuamente vantajosos).
Mas como a produção cinematográfica soviética foi bastante parca, precisavam-se muitas fitas estrangeiras para chamar o público às salas do cinema. E ai entrava o filtro ideológico, que definia claramente os países amigos e os tipos de filmes que poderiam, ou não, serem exibidos.
A Índia da Indira Gandhi e depois do Rajiv Gandhi eram grandes amigos da URSS, como tal a produção de Bollywood era comprada e exibida nos cinemas às toneladas. O filme de maior sucesso foi “Dançarino Disco” (1982), um melodrama indiano com elementos de musical e acção. Segundo país mais representado talvez foi a Itália, onde eram constantemente compradas as obras do Antonioni, Bertolucci, Fellini e outros mestres existencialistas, preferencialmente se os realizadores pendiam para a esquerda. Os intelectuais soviéticos deliciavam-se, mas o grande público os evitava. Escolhendo claramente as fitas francesas, que combinavam algum charme europeu ocidental com a linguagem moderna do cinema popular. Desde pequeno assisti várias vezes o “Le Gendarme se marie” (1968) ou “Le Gendarme Et Les Extra-Terrestres” (1979) e outras comédias do Louis de Funès, fitas de Alain Delon (o mais visto era “La tulipe noire”), filmes do Gérard Depardieu, Pierre Richard e claro inúmeros policiais com o comissário mais castiço daquela época, encarado pelo Jean-Paul Belmondo. Alain Delon até entrou na produção franco – espanhola – suíça – soviética, “Teerão 43” (1981), Moscovo preferia ignorar que em termos políticos o actor apoiava a Frente Nacional de Le Pen. Como excepções da regra geral, por vezes os cinemas exibiam as obras do japonês Akira Kurosawa (e ai era permitido algum erotismo) ou então os filmes patrióticos e de artes marciais produzidas na Correia do Norte. A obra mais vista por milhões de adolescentes foi o “Hong kil dong” (1986), que contava a história do jovem camponês norte – coreano em luta contra os ninjas imperialistas japoneses.
Claro, não se pode esquecer o cinema dos países socialistas: filmes de “índios e vaqueiros”, produzidos no estúdio DEFA da extinta RDA. O índio principal, nobre, sábio, sexy e escultural era o actor sérvio Gojko Mitić (foi índio em 15 filmes), nascido em 1940 e até hoje no activo. Mais raramente os cinemas exibiam os policiais ou westerns produzidos na Roménia: “Artista, dolarii şi ardelenii” (1979) ou “Pruncul, petrolul şi ardelenii” (1981), a saga policial húngara sobre Csöpi Ötvös ou série de espionagem checoslovaca “Třicet případů majora Zemana”.
E finalmente, os filmes dos EUA, mais vigiados de todos, em número extremamente reduzido, salvo erro, na URSS eram exibidos não mais que 2 – 3 obras americanas por ano. E mesmo estes deveriam corresponder às certas exigências ideológicas e depois passar pela censura. O primeiro filme americano que assisti no cinema era o clássico de Robert Redford e Faye Dunaway, “Os Três Dias do Condor” (1975). Um analista da CIA vê todo o seu departamento exterminado pela “CIA dentro da CIA” por causa da informação sobre o petróleo. O filme é muito envolvente (continuo a vê-lo nos dias de hoje), mas por vezes é bastante deprimente. Para acentuar o sentimento da “crise do capitalismo”, os censores soviéticos transformaram o final quase feliz no final “sem saída”, cortando os instantes finais da história. Na versão original, o Condor deixa o homem da CIA na porta do jornal The New York Times, sendo salvo pelo poder real da imprensa livre americana. Já na versão soviética, o homem da CIA pergunta “Quanto tempo você conseguirá andar assim?” e naquele instante o filme acaba. Lembro que o espectador soviético saia da sala melancólico e triste, o bom – rapaz Condor, que venceu tantos CIA´s durante tento tempo, de seguida, quase certamente, seria liquidado pelos “falcões imperialistas”. Catarseado daquela maneira, o espectador poderia se dirigir calmamente à qualquer fila da mercearia mais próxima, testar a sua paciência e sorte na compra de alguma coisa para a janta.
Outros filmes americanos que me lembro eram um pouco do mesmo. “Comboio / Convoy – Comboio dos Duros” (1978), a história do camionista perseguido pelo polícia desonesto, que encabeça o movimento de camionistas (o elemento mítico do “bom povo operário americano”) contra o sistema. Assisti o filme já após o início da Perestroica, talvez por isso o final feliz e alguns elementos eróticos sobreviveram à tesoura dos censores soviéticos. “Capricórnio Um” (1978): três astronautas americanos são forçados pelo seu governo “capitalista” enganar o “bom povo americano”, imitando a viagem ao espaço. Quando o “seu” vaivém vazio sofre o acidente ao retorno à Terra, astronautas são condenados... Outro filme bastante marcante foi “Fleisch” (1979), a fita foi produzida na RFA, mas a história se desenrolava nos Estados Unidos. (Ao ponto de durante muito tempo eu considerar que se tratava de uma produção americana). O par recém – casado é raptado pelos paramédicos que desmembram as pessoas para a venda dos órgãos. A mulherzinha foge e com ajuda do bom camionista proletário persegue a rede clandestina de tráfico. Creio que o filme também teve o final mais ou menos feliz, mas o enredo era recheado de clichés deprimentes: “selva de asfalto”, “polícia corrupto”, “saúde que se compra e vende”, “dissociação da sociedade”, enfim, naquela época eu ainda costumava perguntar aos meus país porque razão essa gente boa não vem morar na URSS. Aqui há trabalho e saúde para todos, não há nem o FBI nem a CIA e toda a gente vive contente e produtiva. Mas não, por alguma razão “os coitados” preferiam continuar a “sobreviver” no “inferno capitalista”, onde o “homem era lobo para outro homem”...
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