O
escritor moçambicano, Mia Couto,
escreveu a carta aberta ao presidente sul-africano Jacob Zuma, dedicada à
problemática de xenofobia naquele país e intitulada “Contra o genocídio de
moçambicanos na África do Sul”.
Exmo.
Senhor Presidente Jacob Zuma
Lembramo-nos
de si em Maputo, nos anos oitenta, nesse tempo que passou como refugiado
político em Moçambique. Frequentes vezes nos cruzámos na Avenida Julius Nyerere
e saudávamo-nos com casual simpatia de vizinhos. Imaginei muitas vezes os
temores que o senhor deveria sentir, na sua condição de perseguido pelo regime
do apartheid. Imaginei os pesadelos que atravessaram as suas noites ao pensar
nas emboscadas que congeminavam contra si e contra os seus companheiros de
luta. Não me recordo, porém, de o ter visto com guarda costas. Na verdade,
éramos nós, os moçambicanos, que servíamos de seu guarda costas. Durante anos,
demos-lhe mais do que um refúgio. Oferecemos-lhe uma casa e demos-lhe segurança
à custa da nossa própria segurança. É impossível que se tenha esquecido desta
generosidade.
Nós
não a esquecemos. Talvez mais do que qualquer outra nação vizinha, Moçambique
pagou caro esse apoio que demos à
libertação da África do Sul. A frágil economia moçambicana foi golpeada.
O nosso território foi invadido e bombardeado. Morreram moçambicanos em defesa
dos seus irmãos do outro lado da fronteira. É que para nós, senhor Presidente,
não havia fronteira, não havia nacionalidade. Éramos, uns e outros, irmãos de
uma mesma causa e quando tombou o apartheid a nossa festa foi a mesma, de um e
de outro lado da fronteira.
Durante
séculos, emigrantes moçambicanos, mineiros e camponeses, trabalharam na vizinha
África do Sul em condições que pouco se distinguiam da escravatura. Esses
trabalhadores ajudaram a construir a economia sul-africana. Não há riqueza do
seu país que não tenha o contributo dos que hoje são martirizados.
Por
todas estas razões, não é possível imaginar o que se está a passar no seu país.
Não é possível imaginar que esses mesmos irmãos sul-africanos nos tenham
escolhido como alvo de ódio e perseguição. Não é possível que moçambicanos
sejam perseguidos nas ruas da África do Sul com a mesma crueldade que os
polícias do apartheid perseguiram os combatentes pela liberdade, dentro e fora
de Moçambique. O pesadelo que vivemos é mais grave do que aquele que o visitava
a si quando era perseguido político. Porque o senhor era vítima de uma escolha,
de um ideal que abraçou. Mas os que hoje são perseguidos no seu país são
culpados apenas de serem de outra nacionalidade. O seu único crime é serem
moçambicanos. O seu único delito é não serem sul-africanos.
Senhor
Presidente
A
xenofobia que se manifesta hoje na África do Sul não é apenas um atentado
bárbaro e cobarde contra os “outros”. É uma agressão contra a própria África do
Sul. É um atentado contra a “Rainbow Nation” que os sul-africanos
orgulhosamente proclamaram há uma dezena de anos. Alguns sul-africanos estão a
manchar o nome da sua pátria. Estão a atacar o sentimento de gratidão e
solidariedade entre as nações e os povos. É triste que o seu país seja hoje
notícia em todo o mundo por tão desumanas razões.
É
certo que medidas estão a ser tomadas. Mas elas mostram-se insuficientes e,
sobretudo, pecam por serem tardias. Os governantes sul-africanos podem
argumentar tudo menos que estas manifestações os tomou se surpresa. Deixou-se,
mais uma vez, que tudo se repetisse. Assistiu-se com impunidade a vozes que
disseminavam o ódio. É por isso que nos juntamos à indignação dos nossos
compatriotas moçambicanos e lhe pedimos: ponha imediatamente cobro a esta
situação que é um fogo que se pode alastrar a toda a região, com sentimentos de
vingança a serem criados para além das suas fronteiras. São precisas medidas
duras, imediatas e totais que podem incluir a mobilização de forças do
exército. Afinal, é a própria África do Sul que está a ser atacada. O Senhor
Presidente sabe, melhor do que nós, que ações policiais podem conter este crime
mas, no contexto atual, é preciso tomar outras medidas de prevenção. Para que
nunca mais se repitam estes criminosos eventos.
Para
isso urge tomar medidas numa outra dimensão, medidas que funcionam a longo
prazo. São urgentes medidas de educação cívica, de exaltação de um passado
recente em que estivemos tão próximos. É preciso recriar os sentimentos
solidários entre os nossos povos e resgatar a memória de um tempo de lutas
partilhadas. Como artistas e fazedores de cultura e de valores sociais, estamos
disponíveis para de enfrentar juntos com
artistas sul-africanos este novo desafio, unindo-nos às inúmeras manifestações
de repúdio que nascem na sociedade sul-africana. Podemos ainda reverter esta
dor e esta vergonha em algo que traduza a nobreza e dignidade dos nossos povos
e das nossas nações. Como artistas e escritores queremos declarar a nossa
disponibilidade para apoiar a construção de uma vizinhança que não nasce da
geografia mas de um parentesco que é da alma comum e da história partilhada.
Maputo,
17 de Abril de 2015
Mia
Couto
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