O repórter
norte-americano Patrick Symmes que aceitou o desafio de viver um mês em Havana
com apenas 15 dólares, salário médio de um cubano, narra seu mergulho na sociedade cubana e os diversos “jeitinhos”
a que precisou recorrer para obter comida, se locomover e até mesmo para
destilar rum caseiro.
Seguem os trechos mais interessantes da sua reportagem tragicómica.
Em Cuba, o salário
médio é de US$ 20. Médicos chegam a ganhar US$ 30, e muitas outras pessoas
ganham só US$ 10. Decidi que me concederia o salário de um jornalista cubano:
US$ 15, a renda de um intelectual oficial. Sempre quis ser um intelectual, e
US$ 15 representava uma vantagem significativa sobre os proletários que
constroem paredes de alvenaria ou cortam cana por US$ 12, e quase o dobro dos
US$ 8 da pensão de muitos aposentados. Com esse dinheiro, eu teria de comprar
minha ração básica de arroz, feijão, batata, óleo, ovos, açúcar, café e tudo o
mais de que precisasse.
CADERNETA Cada família
recebe uma caderneta de racionamento. As mercadorias são distribuídas numa
série de mercearias (uma para laticínios e ovos, outra para
"proteínas", outra para pão; a maior delas cuida dos enlatados e
outros produtos embalados, de café e óleo a cigarros). Cada loja conta com um
administrador que anota na caderneta a quantidade de produtos retirada pela
família. Os vizinhos do meu amigo - marido, mulher e neto - receberam a ração
padronizada de produtos básicos, que consiste, por pessoa, em: dois quilos de
açúcar refinado, meio quilo de açúcar bruto, meio quilo de grãos, um pedaço de
peixe e três pãezinhos.
Eu sempre havia
desdenhado os cubanos que se dispõem a aplaudir o regime em troca de um
sanduíche, mas, já no meu segundo dia na ilha, eu me sentia disposto a
denunciar Obama em troca de um biscoito.
CAFÉ Se era questão de
chupar alguma coisa, eu já sabia exatamente o quê. Apanhei-me contemplando os
Ladas que passavam, para ver se as tampas de seus tanques de gasolina tinham
trancas. Com uma mangueira e um recipiente plástico, eu poderia obter cinco
litros de gasolina e vendê-la por intermédio de um amigo no bairro chinês. Mas
todos os carros de Cuba têm trancas nas tampas do tanque de combustível, ou
ficam protegidos atrás de portões trancados, à noite. Já havia homens demais, e
bem mais durões que eu, envolvidos nesse tipo de trabalho. Cuba não é terra
para ladrões amadores.
COMIDA ROUBADA Fui
perseguido por duas mulheres que acenavam com uma lata imensa de molho de
tomate e gritavam "15 pesos! É para os nossos filhos!" Não parei, mas
depois percebi que havia cometido um erro. Ao preço de 15 pesos por uma lata em
tamanho restaurante, o molho de tomate seria uma pechincha. Comida roubada é a
mais barata. E nada poderia ser mais normal em Cuba do que caminhar carregando
uma lata gigante de alguma coisa.
PROGRESSO Quando contei
a (dissidente Elizardo) Sánchez que havia caminhado até sua casa, como parte de
um plano para passar 30 dias vivendo e comendo como um cubano, ele me mostrou
sua caderneta.
"O nome disso é
caderneta de suprimentos", disse ele, "mas é um sistema de
racionamento, o mais duradouro do mundo. Os soviéticos não tiveram racionamento
por tanto tempo quanto os cubanos. Nem mesmo o racionamento chinês durou
tanto." A escassez surgiu logo depois da revolução; o sistema para a
distribuição controlada de bens básicos já estava em funcionamento em 1962. Depois
de 50 anos de Progresso, o país está falido, na prática. Em 2009, ervilhas e
batatas foram retiradas da ração e os almoços baratos nos locais de trabalho
foram reduzidos às dimensões de lanches rápidos.
Como sobreviver,
portanto? "Os cubanos inventam alguma coisa", disse Barbara. Um dos
truques é vender os bens racionados, comprados a baixo preço, pelo valor de
mercado. Foi assim que enfim consegui comprar minha porção de 10 ovos. Sem a
caderneta de racionamento, não tinha como comprá-los legalmente. Mas ao
anoitecer do dia anterior, eu havia esperado perto da loja de ovos local, onde
troquei um olhar com uma mulher idosa que estava saindo com 30 ovos – um mês de
suprimento para três pessoas. Ela os comprou a 1,5 peso por unidade, e me
vendeu 10 deles por dois pesos cada. Voltou à loja e imediatamente comprou mais
ovos, lucrando três ovos e alguma sobra de dinheiro com a transação. Os dois
caminhamos de volta para nossas casas cuidadosamente, com medo de desperdiçar toda
a ração mensal de proteína por conta de um único tropeço.
Para sobreviver, todo
mundo precisa de "algo extra", alguma renda excluída do sistema. O
marido dela alugava um quarto para um turista sexual norueguês. A vizinha
vendia almoços a trabalhadores de uma empresa cujo refeitório fora fechado
recentemente. A mãe dela caminhava pelas ruas com uma garrafa térmica e xícara,
vendendo cafezinhos. Uma vizinha na rua ao lado roubava óleo de cozinha e
revendia por 20 pesos a garrafa de meio litro. Outra vizinha roubava carne de
frango e a vendia por 33 pesos o quilo. ("Boa qualidade, preço muito bom,
você devia comprar", ela aconselhou.) Eu costumava dizer que, em Cuba, 10%
de tudo era roubado, para revenda ou reaproveitamento. Agora creio que a
proporção real seja de 50%. O crime é o sistema.
A caminho de casa, uma
mulher perguntou onde passava o ônibus P2. Atrapalhei-me para responder.
"Ah, achei que você fosse cubano", ela disse. Mude de peso, mude de
nacionalidade. Ri de seu engano e continuei andando, mas não demorou um minuto
para que ela me seguisse. "Ei, me leve para almoçar", ela disse.
"Onde você quiser". Fiz que não com a cabeça. "Almoço", ela
disse, enquanto eu me afastava. "Jantar. Como preferir". Em casa,
abri a geladeira e contei os cinco ovos que me restavam.
Mas Ofelia (esposa do
dissidente Oswaldo Payá) tirou a embalagem da cesta de lixo. Era carne de peru
"separada mecanicamente" produzida pela Cargill, dos Estados Unidos,
parte das centenas de milhões de dólares em produtos agrícolas vendidos a Cuba
a cada ano sob uma cláusula de isenção do embargo. Era quase intragável, mesmo
com a fome que eu sentia, mas Ofelia tinha um sorriso largo nos lábios.
"Muito melhor que o peru que comprávamos antes", disse.
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