Assim, no biénio de 1954-56 só a região ucraniana de Volyn recebeu 1370 retornados, ou na linguagem soviética, usada pelo KGB, os «re-emigrantes», divididos de seguinte forma pelo país da proveniência:
- Argentina: 1166 pessoas;
- Brasil: 40 pessoas;
- Canadá: 77 pessoas;
- Paraguai: 16 pessoas;
- Uruguai: 71 pessoa.
Naturalmente, KGB não perdeu o tempo, passando vigiar de perto todos estes «alvos operativos». Para o efeito, a secreta soviética recrutou 21 agente entre os próprios retornados (17 deles somente em 1956), outros 18 cidadãos foram recrutados entre a comunidade local, para espiar os recém-chegados. No total, KGB usava um pequeno exército de 127 agentes seus, somente para controlar os retornados em Volyn. Embora além de Volyn os retornados viviam nas regiões ucranianas de Chernivtsi, Dnipropretrovsk, Kharkiv, Kherson, Kyiv, Luhansk, Lviv, Odessa, Rivne, Staline (Donetsk), Stanislaviv (Ivano-Frankivsk) e Ternopil.
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Informe, 22.IX.1956 / declassificado pelo SBU em junho de 2013 |
No entanto, já em 1956-58, entre os retornados, principalmente da Argentina, surge um movimento considerável de pessoas, rapidamente desencantadas com a realidade comunista, desejosos de voltar à Argentina. Algo que o estado soviético não queria permitir, usando diversos meios, ao alcance do KGB, como forma de coagir os retornados. Geralmente, os operativos do KGB, através da sua rede de agentes e informadores identificavam aqueles que mais desejavam sair da URSS, pressionando essas pessoas para mudarem das suas ideias. Estando, na assim chamada, época de «degelo» de Khruschev, KGB não usava a violência física, mas uma série de técnicas e truques de persuasão. Por exemplo, num dos documentos internos, de 1959, o oficial do KGB encarregue destes casos, informava os seus superiores de que, serão empreendidos os esforços de persuadir um certo jovem ucranianos, nascido na Argentina à não voltar para o seu país natal. Caso este recusar à assinar uma declaração formal neste sentido, KGB planeava pressionar o seu pai para declarar que o menino se encontrava sob o «efeito negativo dos funcionários de embaixada aregentina», que alegadamente manipulavam a vontade do jovem.
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Declaração de 28-02-1959, «totalmente secreto», 2º exemplar |
Para servir de justificativa da viagem do agente «Dalekiy» ao Moscovo, essa foi legendada como a sua visita ao «Comité de Todos os Eslavos da União Soviética» (1941-1962), uma organização de fachada do NKVD-MGB-KGB, fundada com aval do próprio Estaline em 1941, com a tarefa de «unir todos os eslavos na luta contra o nazismo e o fascismo».
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Capa da revista «Slavyane» (Eslavos), publicada pelo Comité, maio de 1945 |
O retornado Petró Schagan, residente em Kharkiv, pelo menos desde 1958-59 estava na mira do KGB como a pessoa que pretendia voltar à Argentina e à quem as autoridades soviéticas não pretendiam dar essa permissão. Juntamente com um outro re-emigrante, Mykhaylo Indyk, os dois eram seguidos de perto pelos agentes e informadores do KGB, nomeadamente a agente «Lyuba». O KGB os via como uma célula sibversiva e até lhes atribuiu o nome próprio, «Os Fugitivos», classificando os dois retornados como «aqueles que mostram a hostilidade, nutrindo as intenções de imigração».
Outro dos retornados inconformados com a realidade soviética era Ivan Kotsyumbas, ucraniano nascido em 1923, que após voltar à sua amada Ucrânia trabalhava em Lviv, como torneeiro, numa fábrica secreta, chamada simplesmente de «caixa postal número 125». Dessa forma, na União Soviética eram designadas as fábricas ligadas, mesmo que apenas parcialmente, ao setor da defesa. Em vez de ter o nome pomposo do tipo «Fábrica de calochas Vitória do Comunismo» ou «Cooperativa de botas de feltro Camaradas Lenine e Estaline», as unidades fabris do setor armamentista eram designdas apenas com o número da caixa postal, através do qual recebiam a sua correspondência oficial.
Operário qualificado, Ivan Kotsyumbas, era razoavelmente bem tratado pelas autoridades soviéticas. Além de trabalhar na fábrica ligada à defesa, e como tal, mais próspera do que as unidades viradas à desinteressante «economia popular», Kotsyumbas vivia num «apartamento bem equipado», embora partilhado como o filho bebê Ivan (Juan Carlos), esposa Anna e a sua velha mãe, o informe do KGB não preservou nos o nome da senhora. As autoridades, possivelmente municipais, chegaram de lhe atribuir uma espécie de subsídio, embora pago uma única vez, no valor de 1200 rublos (ao câmbio oficial soviético cerca de 204 dólares americanos da época ou seja $2,255.91 em 2025).
Apesar de toda essa fartazana soviética, já em novembro de 1956 Ivan Kotsyumbas visitou a embaixada da Argentina em Moscovo, após disso, pediu, por escrito, ao Ministério do Interior (na época já separado do KGB), emitir-lhe, assim como aos seus familiares, os documentos de viagem que permitissem o regresso à Argentina. O seu desejo de sair da URSS argumentou pelos «salários baixos, dificuldades financeiras, hábitos de vida e do clima da Argentina». Como se pode calcular, KGB não ficou nada contente com toda essa situação, deixando sem resposta o pedido do nosso retornado. Não se sabe se os chekistas exerceram algum tipo de coersão sobre Kotsyumbas. Única certeza que podemos ter, é que nem ele, nem a família foram deixados à sair da União Soviética, carinhosamente chamada pelos ucranianos de «cadeia dos povos» ou «prisão das nações».
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Juan-Carlos Kotsyumbas, década de 1970 |
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Juan-Carlos Kotsyumbas, primeiro à esquerda |
Infelizmente, como muitos músicos e ainda mais, os roqueiros da sua geração, Juan Carlos, conhecido no meio underground de Lviv como “Carlo” ou “Katsamonya”, cedo entrou no mundo dos excessos, acabando por falecer, vítima de uma overdose, em novembro de 1984, aos 29 anos de idade. O seu pai faleceu um ano depois, também bastante jovem, aos 62, muito possivelmente abalado pela morte do seu filho único.
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A tumba do pai e filho Kotsyumbas no cemitério de Sykhiv em Lviv. Foto: Ihor Monchuk |
Ivan Kotsyumbas, juntamente com Juan Carlos, que teve o seu nome sovietizado para a forma de «Carlos Ivanovich Kotsyumbas», estão sepultados, lado ao lado, no Sykhiv, um dos cemitérios históricos da cidade de Lviv. A foto não deixa mentir, a sepultura familiar está bastante bem tratada e arrojada. Significa que a sua memória não foi esquecida e ainda hoje há quem cuida do espojo de dois ucranianos simples, que tiveram o azar de entrar nos dentes do moinho histórico, que tanto castigou a Ucrânia e a sua gente durante todo o século XX, e continua, à castigar no século XXI.
No entanto a história não para nem por um minuto. Chegamos ao ano de 1962. A União Soviética sobreviveu a Crise dos mísseis de Cuba (também conhecido como a Crise de Outubro ou Crise do Caribe). Prosseguindo com a sua política de «degelo», Khruschev permite a publicação do conto «Um dia na vida de Ivan Denisovich», de Alexander Solzhenitsin, que teve o efeito de uma bomba atómica na sociedade soviética. A primeira denúncia pública dos horrores do GULAG e do estalinismo comunista, ainda mais oficialmente publicado na URSS.
Tudo isso, muito naturalmente, não trava o KGB na sua luta ferroz e constante aos retornados ucranianos. Em abril de 1962, o KGB, através do agente «Sasha», recebe a informação do que, o já conhecido, por eles e agora por nos, Petró Schagan, de Kharkiv, pretende viajar à Moscovo, para se manifestar publicamente contra a recusa soviética de deixar os retornados de voltar à Argentina. Mais uma vez, KGB se recusa de se dar por vencida e estabelece os objetivos estratégicos: «tomar as medidas de redobramento da vigilância aos re-imigrantes com as tendências de emigração e impedir a sua viagem ao Moscovo ou ao Kyiv para evitar uma provocação possível».
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Informe aos chefes do KGB de todas as regiões da Ucrânia, 6-04-1962 / declassificado em junho de 2013 |
No final da década de 1950, o KGB estabelecia os protocolos de tratamento aos cidadãos, que pretendiam visitar as embaixadas ou consulados estrangeiros em Moscovo: «deter, sob pretexto plausível, no local da residência ou no meio da viagem, impedindo a sua chegada ao Moscovo». Assim, em agosto de 1958, duas senhoras ucranianas re-emigrantes, Paulina Orenchuk e Ustynya Pylypchuk tentaram visitar a embaixada da Argentina em Moscovo. Foram detidas pela polícia, que os levou à esquadra, onde levaram o sermão, chamado «conversa explicativa». Não convencidas, as senhoras, nos próximos três dias tentaram exercer o seu direito de serem atendidas numa embaixada do país, que consideram também como seu. No fim, foram simplesmente expulsas de Moscovo, às custas do KGB. Casos do género eram vários, alguns dos retornados conseguiam ligar para a embaixada/consulado, relatando a sua situação. Naturalmente, os diplomatas argentinos, mesmo por muita vontade, não podiam fazer quase nada, a União Soviética continuava ser uma «cadeia dos povos», que não aceitava libertar nenhuma presa, apanhada nas teias do seu esforço propagandista. Imaginem só, se os retornados voltariam à Argentina e contassem publicamente como, realmente, era a vida no «primeiro país socialista». Seria um escàndalo e KGB estava lá para os evitar. À qualquer custo.
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Pedro Conde Magdaleno, o adido operário da Argentina na URSS (1947-48), foi o autor do livro-denúncia «Por que os espanhóis exilados na URSS fogem em baús?», 1951. |
O já lembrado aqui Solzhenitsin (dissidente, nacionalista e monarquista xenófobo russo), memorizou estes tempos, com o título da sua biografia, «O carvalho e o bezerro», evocando a luta desesperada de um bezerro, na tentativa pouco realista de derrubar o carvalho. Parecia coisa completamente inútil e desesperante. Os dissidentes nunca derrubarim KGB. Os retornados ucranianos nunca mais voltariam à Argentina. No entanto, quando foi menos esperado, o «colosso com pés de barro», a União Soviética tombou e se desfez em pedaços. Ucrânia sentiu a sua chance histórica e proclamou de imediato, a restauração da Independência nacional. Algo que salvou o país do abismo em 1991 e permitiu, apesar de tudo, sobreviver nos dias de hoje. Embora isso é uma outra história.
Agradecimentos:
- Arquivo Estatal Setorial do SBU
- Historiador ucraniano Eduard Andrusenko
- A tumba familiar dos Kotsyumbas foi encontrada pelo necropolista ucraniano Ihor Monchuk, autor da foto.
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