Este
texto é sobre um genocídio mas não sobre o Holocausto. Fala da grande fome da
Ucrânia – conhecida por Holodomor – um outro genocídio provocado por Stalin em
1932/33, mas praticamente desconhecido.
por: Francisco
Lopes Matias, Observador.pt
[...] Este texto não é sobre o Holocausto. É sobre a grande fome da Ucrânia
– mais conhecida por Holodomor – um genocídio em massa provocado por Stalin
entre 1932 e 1933, mas praticamente desconhecido.
Para
explicar este massacre, importa perceber primeiro o contexto espácio-temporal
em que se insere. Mal chegou à liderança da União Soviética, em 1924, Josef
Stalin tomou um conjunto de medidas para garantir a total abolição da
propriedade privada, através da colectivização de todas as terras. Este modelo
arrancou, em pleno, no ano de 1929, quando Stalin decretou a entrega imediata
de toda e qualquer propriedade ao Estado Soviético. Este plano definia que cada
terra (kolkhozes se formadas por uma cooperativa ou sovkhozes se administradas
directamente pelo governo) deveria obedecer a certas quotas mínimas de
produção, entregando depois tudo o que produzisse ao governo central da URSS,
que distribuiria igualmente por todos os cidadãos, independentemente da região
proveniente.
Esta
decisão não foi, naturalmente, consensual, de modo que se veio a verificar, um
pouco por todas as 15 repúblicas soviéticas, alguma resistência por parte dos
proprietários rurais. O caso mais notório de oposição declarada a esta medida
do I Plano Quinquenal de Stalin foi a Ucrânia, extremamente rica em
matérias-primas e fértil em produtos agrícolas (trigo, beterraba, batata, por
exemplo) e que seria, assim, enormemente prejudicada por esta lei agrícola,
visto que, produzindo muito, não beneficiaria nada desta nova condição.
Todavia, entre revoltas e contestação, o plano começou, à força, a ser aplicado
e as quotas agrícolas exigidas à Ucrânia eram cada vez mais elevadas e
desproporcionais, o que, conjugado com alguma desorganização, resistência e más
condições meteorológicas, começou a causar alguma fome, que já se notava em
1931. Era preciso passar fome para que se cumprissem as quotas, mas, mesmo
assim, Moscovo só recebeu 39% do valor utópico exigido à Ucrânia.
Perante
a realidade ucraniana, Stalin decidiu tomar medidas implacáveis. Considerou que
a responsabilidade pela produção baixa e insuficiente não era das metas
completamente irrealistas fixadas pelo sistema de quotas ou da desorganização
do sistema de colecta, mas antes daquilo que apelidou de “sabotagem dos
nacionalistas e contra-revolucionários” ucranianos, que queriam, acima de tudo
(na versão quase paranóica do ditador russo), ver o plano de Stalin fracassar.
Na carta que endereçou a Kaganovich, um dos seus mais íntimos colaboradores, a
11 de Agosto de 1932, afirmava mesmo que “a Ucrânia é hoje em dia o principal
problema (…) É preciso transformá-la numa fortaleza bolchevique, sem olhar a
custos”. E Stalin seguiu
literalmente estas suas palavras.
Visitar o museu do Holodomor em Kyiv |
As
colheitas mantinham-se e o trabalho permanecia obrigatório, mas não havia mais
redistribuição e os camponeses passaram a estar proibidos de comprar alimento.
A comida pura e simplesmente desapareceu. Para garantir que ninguém fugia a
este plano demoníaco, Stalin proibiu o êxodo dos camponeses para a cidade.
Como
represália pelo fracasso no plano megalómano que ele mesmo ordenara, Stalin
usou a fome para castigar o povo ucraniano. Entre Setembro e Novembro de 1932,
bloqueou completamente o fornecimento de alimentos à população rural da Ucrânia
(mais de 75% do seu total). As colheitas mantinham-se e o trabalho permanecia
obrigatório, mas não havia mais redistribuição e os camponeses passaram a estar
proibidos de comprar alimento. A comida pura e simplesmente desapareceu. Para
garantir que ninguém fugia a este plano demoníaco, Stalin proibiu o êxodo dos
camponeses para a cidade, interditando também a sua circulação através da rede
de comboios. Tal servos da gleba, os camponeses ucranianos estavam obrigados a
permanecer nas suas terras, inevitavelmente condenados a morrer à fome nas
aldeias geladas da Ucrânia soviética. Qualquer roubo da mais pequena semente de
trigo era condenado, ao abrigo da famosa “lei das cinco espigas”, a dez anos
num campo de trabalho forçado (gulag) ou mesmo à pena capital, normalmente
executada no local. As conexões com o mundo urbano foram cortadas e os
jornalistas proibidos de visitar o campo ucraniano. Aquele povo estava a morrer
à fome, mesmo produzindo mais do que nunca.
Em
apenas de um ano, morreram milhões de ucranianos (as estimativas variam entre
os 4 milhões de mortos e os 12 milhões, que significavam, respectivamente,
12,5% e 37,5% da população total da Ucrânia) da forma mais lenta e desumana, de
fome. Famílias inteiras arrasadas, crianças que nasceram sem vida, milhares de
seres humanos deixados no chão ao abandono, corpos que nada mais eram do que a
pele colada ao osso. Tudo por capricho, vaidade e vingança de Stalin, que, para
mostrar que era o líder supremo e omnipotente da URSS, ordenou um dos maiores
massacres humanos de que há memória. Nunca num tempo tão curto tanta gente foi
morta por tão pouco. Este autêntico genocídio do povo ucraniano foi baptizado
de “Holodomor”, que advém da expressão ucraniana “Морити голодом”, que
significa “matar pela fome” e foi executado enquanto em grande parte do Ociente
se louvava o suposto “milagre económico soviético”, como foi designado por
Walter Duranty, conceituadíssimo jornalista do New York Times e prémio
Pulitzer, que era, no entanto, negacionista do Holodomor e colaborador próximo
de Stalin.
Enquanto
40 milhões de pessoas passavam fome e muitos deles acabavam mesmo por padecer,
a URSS exportava trigo como nunca antes se vira, chegando aos 5.170.000 de
toneladas (grande parte vinda da Ucrânia) vendidas ao estrangeiro. Fazia assim
transparecer para o exterior uma imagem de vitalidade e progresso económico,
enquanto a realidade interna era bem diferente. Em 1933, a produção ucraniana representou
cerca de 32% do total soviético, sendo, de longe, a província mais fértil,
próspera e rica de todo o território da URSS. Contudo, embora continuassem a
exportar, os kolkhozes ucranianos não recebiam sequer uma ínfima parte do
alimento que produziam. Mantinham-se, por ordem do governo, esfomeados e cada
vez mais frágeis.
O
pior do Homem veio ao de cima, não por maldade, mas por sobrevivência. Tudo era
motivo para conseguir um pão. Denunciava-se a própria família, inventavam-se
mentiras sobre os vizinhos, compactuava-se com os piores crimes do Exército.
Por uma fatia de pão.
Pelos
motivos aparentemente mais insignificantes, centenas, se não milhares de
camponeses, foram expostos às maiores torturas e condenados às penas mais
horríveis. Numa carta ao próprio Stalin, o oficial soviético Mikhail Cholokhov
descreve a violência policial e do Exército Vermelho contra o povo ucraniano
(“E eis alguns dos métodos empregados para obter essas 593 toneladas, das quais
uma parte estava enterrada… desde 1918! O método do frio… Os kolkhozianos são
despidos e postos ‘ao frio’, completamente nus, num celeiro. Muitas vezes, são
bandos inteiros de kolkhozianos que são postos ‘ao frio’. O método do calor, em
que os pés e as barras das saias das kolkhozianas são regados com gasolina e,
em seguida, ateia-se fogo, que depois é apagado para começar de novo… No
kolkhoz de Napolovski, um tal de Plotkin, ‘plenipotenciário’ do Comitê do
Distrito, forçava os kolkhozianos interrogados a deitarem-se sobre um forno em
brasa, depois ele os ‘esfriava’ trancando-os nus num celeiro… No kolkhoz de
Lebiajenski, os kolkhozianos eram alinhados ao longo de um muro, e uma execução
era simulada… Eu poderia multiplicar ao infinito esse tipo de exemplos. Não são
‘abusos’, mas o método usual de colecta do trigo…”). Stalin respondeu, cínico,
que “os lavradores não são nenhumas ovelhinhas inocentes”.
A
desgraça humana era total e a maldade chegou a níveis indescritíveis. Sem
qualquer necessidade disso, um líder político ordenou a morte e a fome do seu
próprio povo. O pior do Homem veio ao de cima, não por maldade, mas por sobrevivência.
Tudo era motivo para conseguir um pão. Denunciava-se a própria família,
inventavam-se mentiras sobre os vizinhos, compactuava-se com os piores crimes
do Exército. Por uma fatia de pão. O Holodomor trouxe também consigo a horrenda
realidade do canibalismo. Cantavam tristes as crianças ucranianas no Inverno de
1932-33: “Fome e frio estão nas nossas casas/ Nada que comer, nenhum lugar para
dormir/ E o nosso vizinho perdeu a sua razão e comeu os seus filhos”.
Na
verdade, milhares de famílias, com um dos membros mortos pela fome, eram
obrigadas, para não seguirem o mesmo destino, a comê-lo. Numa entrevista que
deu na década de 1990, uma vítima da grande fome ucraniana contou a sua
duríssima experiência, quando criança: “Um dia, a filha de uma vizinha da nossa
aldeia desapareceu. Todos fomos procurá-la, mas não estava em lado nenhum. Na
mesma tarde, entrámos na casa de uma camponesa e deparámo-nos com a criança
procurada. A cabeça estava em cima de uma mesa e o corpo a assar, para servir
de alimento”.
Como
esta, houve centenas de histórias e quantidades incontáveis de crianças foram
raptadas para servirem de alimento. Uma das alternativas encontradas ao trigo
foi o pirojki, um patê feito com fígado humano. Mas a maldade não fica por
aqui. Também em condições muito difíceis, os agentes da NKVD (polícia secreta
do regime soviético) recebiam 200 gramas de pão por cada corpo que
encontrassem. Os corpos eram enterrados em valas comuns, muitas vezes ainda
vivos. A propósito desta realidade, um ucraniano que viveu este terror descreve
que “a maioria morria lentamente, em casa (…) Os militares entravam nas casas e
perguntavam: “Onde estão os seus mortos?”. Uma vez, havia apenas uma mulher
moribunda deitada na cama. Eles disseram: “Vamos levá-la, ela vai morrer de qualquer
forma”. Ela implorava: “Não me enterrem, que eu ainda estou viva! Eu quero
viver!”. Os guardas insistiram: Para quê vir amanhã por ela? Vai morrer de
qualquer forma!”. Levaram-na e enterraram-na viva”.
Honestamente,
a única diferença entre a planície ucraniana nos anos de 1932 e 1933 e o
Inferno é que, em vez de chamas, ali havia quilómetros intermináveis de neve e
temperaturas na ordem dos 30°C negativos. Enquanto as valas comuns se enchiam
de corpos quase sem carne e completamente desprovidos da sua dignidade, o trigo
de que o povo ucraniano era privado enchia os cofres da URSS, batendo os
recordes de exportação para a Europa e para o mundo ocidental. Muitos se
esforçaram para descredibilizar aqueles que, como Gareth Jones e Malcom
Muggeridge, denunciaram os horrores da fome ucraniana e só na década de 1980 é
que investigações sérias começaram a ser conduzidas e relatórios produzidos.
Estas
vítimas não tiveram direito a funerais nem a lápides bonitas. Não tiveram
direito a ser reconhecidas pelos seus nomes, não tiveram direito a memoriais e
praticamente não são referidas nos livros de História. Mas estas vítimas são
como, vós, caríssimo leitor. São como eu, são como nós. Estas vítimas eram
milhões de seres humanos (mulheres, crianças e homens adultos), inocentes,
condenados a morrer da forma mais cruel e morosa, condenados a serem apagados
do mapa e da História. Em apenas um ano, milhões de ucranianos foram
exterminados, por puro sadismo e vingança de um líder e de um governo que devia
ter como única missão defendê-los e às suas vidas. Esquecer o Holodomor ou
ficar-lhe indiferente, tal como esquecer o Holocausto, é demitirmo-nos da nossa
humanidade, é aceitar que, em última instância, nada mais somos como raça e
como espécie do que instrumentos à mercê de alguns facínoras que se outorgam o
direito divino de definir o bem e o mal, quem vive e quem morre. E isto, nunca!
Ser-se humano, livre e capaz de amar verdadeiramente, é a maior graça que
podemos ter e receber. Não a entreguemos de mão beijada àqueles que apenas a
querem aniquilar.
Este
texto é, assim, dedicado aos milhões incontáveis de mortos provocados por este
genocídio absolutamente impiedoso. A eles, todo o meu respeito e homenagem. E
se umas breves palavras de um jovem desconhecido nada podem fazer para evitar a
tragédia que aconteceu, têm, no entanto, o poder de lembrar o pior a que o
Homem pode chegar, nunca esquecendo que cabe a cada um de nós, cidadãos do
mundo e seres humanos, impedir que tal se repita.
O
autor não escreve em conformidade com as regras do novo Acordo Ortográfico.
1 comentário:
Todos deveriam conhecer a título de informação os efeitos dessa doença chamada comunismo, assim essa maldição talvez já fosse criminalizada no mundo inteiro. Infelizmente a praga socialista comunista continua mais viva do que nunca no mundo, disfarçados de políticos, de juízes, de autoridades, onde criam e votam leis em benefício próprio, benefícios vitalícios e infinitos, enquanto o povo se mata de trabalhar e mal consegue pagar tanto imposto. Sou descendente de Ucranianos e corta o coração saber desse passado cruel.
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