quarta-feira, abril 09, 2025

A história da vida íntima e sexual da União Soviética

O historiador Rustam Alexander publicou o livro “Havia sexo. A vida íntima da União Soviética” dedicado à atitude do regime comunista em relação ao sexo e abrange o período de 1920, quando os abortos foram legalizados no país, até à revolução sexual da era da Perestroika. 

Os trabalhadores soviéticos da década de 1920 falam sobre sonhos molhados. Os mineiros da década de 1960 estavam interessados no patting. As moças de Arkhangelsk são julgadas por casos com estrangeiros aliados na década de 1940. O Festival da Juventude e dos Estudantes de Moscovo tornou-se a revolução sexual local. Com base em materiais de arquivo, memórias e registos médicos, o historiador criou um quadro abrangente da vida sexual da URSS. O que une todas as histórias é um tema comum sobre como a proibição do aborto, a falta de educação sexual e a imposição do puritanismo hipócrita levam ao aumento da ignorância, da violência e da mortalidade. E como é que as pessoas encontram coragem dentro de um sistema totalitário para pedir a liberalização das leis, a educação sexual e as conversas abertas sobre sexualidade? 

Na sua investigação, o autor chega à conclusão de que apenas a década de 1920 e o final da década de 1980 podem ser vistas como um período relativamente liberal em termos de liberdade sexual na URSS. Se na Rússia soviética, durante o período de NEP, os jornalistas podiam escrever: “A masturbação é uma coisa fascinante e útil (eu sei por experiência própria)”, e as pessoas nuas podiam manifestar-se no centro de Moscovo/ou, então já em 1929 tudo mudou drasticamente. Os livros sobre sexo foram proibidos, o assunto deixou de ser discutido publicamente e, pouco depois, o aborto foi proibido e os direitos dos cidadãos ao divórcio foram restringidos. O sexo, claro, não desapareceu, mas os cidadãos soviéticos já não eram aconselhados a falar sobre esta “estupidez indecente”. 

Sociedade «Abaixo a Vergonha!» 

Um movimento nudista radical na URSS que esteve ativo em 1924-1925. Existia sobretudo em Moscovo, embora haja informações sobre as ações da sociedade noutras cidades, em particular na capital da Ucrânia Soviética, cidade de Kharkiv. Os membros da sociedade andavam completamente nús ou usavam apenas uma fita sobre os ombros com a inscrição “Abaixo a vergonha!” Desta forma, protestavam contra a hipocrisia “burguesa” e exigiam que se tirasse a roupa em prol da libertação do espírito. 

Cartoon «Propaganda nua» (parcial) da
sociedade «Abaixo à vergonha!», 1924

A primeira surpresa do livro é que tanto as autoridades que estudaram utilizando manuais soviéticos como os profissionais da área de saúde (incluindo as mulheres) se manifestaram contra a educação sexual e a favor da proibição do aborto. Mas as forças de segurança (principalmente a polícia) quando se tratava de relações heteronormativas, paradoxalmente tratavam o tema sexual de uma forma muito mais branda. Estavam relutantes em processar os médicos que realizavam abortos ilegais e os seus clientes, o que irritava o Ministério da Saúde. A segunda surpresa é o número de especialistas que tentaram combater a aura de tabu. Havia muitos deles. Inspirados pela investigação de Alfred Kinsey nos Estados Unidos, os sexólogos soviéticos tentaram, desde a década de 1960, abalar a norma de silêncio em torno deste tema. 

Entre os especialistas com visões condicionalmente liberais estava não só o famoso sexólogo Igor Kon, mas também o seu aluno Sergei Golod, que em 1968 estudou as relações sexuais entre jovens (devido à censura, a obra nunca foi publicada). O sexólogo Ilya Popov, da cidade cazaque de Temirtau, estudou as preferências dos operarios locais, descobriu que, mesmo neste ambiente, estes estavam ativamente interessados em temas como patting/carícias e sexo oral, e ficaram perplexos por não haver discussão sobre isso na imprensa soviética. A investigação de Popov, claro, também não teve permissão para ser publicada. Mas em 1962, a jornalista Evgenia Rozanova conseguiu ser publicada, descrevendo no seu artigo para o jornal bastante popular “Jovem Comunista” casos de abusos sexuais aos adolescentes em Kuibyshev (atual Samara). A autora chegou à conclusão de que uma das razões dos crimes é a falta de educação sexual. Mas o seu trabalho publicado não gerou uma discussão alargada.

Capa da revista infantil soviética «Murzilka», 1928

O silêncio geral sobre o “problema sexual” e as leis proibitivas levaram as consequências catastróficas. Alexander descreve na sua obra a epidemia de doenças sexualmente transmissíveis entre os jovens soviéticos, mesmo antes do surgimento de HIV-SIDA/AIDS. O historiador aborda ainda casos em que mulheres soviéticas morriam em consequência de abortos ilegais. Também a violência — naquela época não existia o conceito de consentimento sexual ativo, pelo que a violência muitas vezes nem sequer podia ser reconhecida. Mais tarde, a Primavera de Khruschev enfraqueceu a legislação punitiva de Estaline, mas não alterou verdadeiramente as atitudes em relação ao corpo das mulheres e ao direito de escolha. 

Apesar da vastidão do tema, Alexander consegue prestar atenção a cada questão: como era organizado a prostituição soviética, como as mulheres soviéticas escondiam as suas relações com os estrangeiros, como as atitudes em relação ao sexo foram influenciadas pelo turismo durante o Festival Mundial da Juventude de 1957, como o tabu de falar sobre relações desapareceu durante o período da Glasnost – e como a russia atual restaurou o conservadorismo soviético. 

6º Festival Mundial da Juventude e dos Estudantes 

O Festival Mundial da Juventude e dos Estudantes, em 1957, realizado em Moscovo/ou, tornou-se um dos símbolos mais marcantes do degelo de Khruschev e o primeiro contacto em massa da juventude soviética com estrangeiros após muitas décadas de isolamento. Mais de 30 mil pessoas de 131 países participaram no festival. O evento não só contribuiu para a propaganda internacional do socialismo, como também deu impulso às mudanças culturais dentro da URSS, despertando nos jovens o interesse pela liberdade e por novas ideias face à censura persistente e ao controlo/e ideológico. 

Imagem: Sovietpostcards

O tema do género perpassa todos os capítulos. As mulheres foram as primeiras a sofrer com as proibições sexuais rigorosas, enquanto os benefícios das liberdades que antes existiam eram maioritariamente usufruídos pelos homens. Por exemplo, na década de 1920, o sexo casual sem consequências era uma prática comum para os homens, mas as mulheres podiam ser acusadas de promiscuidade, despedidas do serviço ou expulsas da Universidade por tais relações. Apesar da conversa sobre um “copo de água”, o estigma social e os padrões duplos determinam há décadas quem pode exercer a liberdade sexual e como. 

A teoria do «copo de água» 

Uma ideia radical de liberdade sexual, popular nos primeiros anos após a revolução bolchevique, sobretudo entre os jovens. De acordo com esta teoria, satisfazer o desejo sexual deve ser tão simples e isento de complicações morais como beber um copo de água. Foi atribuído a Alexandra Kollontai e aos defensores da “moralidade proletária”, embora a própria Kollontai se tenha afastado mais tarde das interpretações demasiado vulgares. A teoria causou um debate aceso e foi rapidamente condenada pela parte mais conservadora da liderança do PCUS. 

Questão do género: «Cada jovem comunista é obrigada
corresponder ao desejo dele senão ela é pequena burguesa»

O ponto de partida para o relato sobre o sexo no período soviético é a famosa citação de Lyudmila Ivanova, participante na teleconferência Leninegrado-Boston de 1986, que declarou: «Não há sexo na URSS, só temos amor». O livro termina com este mesmo episódio. A primeira parte da frase, que se tornou um meme, mostra eloquentemente os resultados da luta do governo soviético contra a discussão sobre o sexo. Os resultados desta luta ainda hoje se fazem sentir, mesmo se deixarmos de lado as tentativas modernas do Estado russo de se apropriar da vida privada dos seus cidadãos.

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