Na Itália foi publicado um livro sobre Giorgio Scerbanenco. O seu autor é um jornalista milanês – Alessandro Trocino. Chama-se: “Scerbanenco em Milão”. Subtítulo: «O pai do noir italiano».
O maior sucesso de Scerbanenco é a quadrilogia com o detetive milanês Duca Lamberti. São quatro romances: “Uma Vénus Privada” (a edição portuguesa), depois “Traidores por Vocação” (no original – “Traditori di tutti”).
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O terceiro romance chama-se “Jovens Sádicos” (em italiano “I ragazzi del massacro”, em baixo, o filme, baseado naquele texto, que pode ser visto no YouTube). O último romance, que foi publicado no ano da morte do escritor, é “Os Milaneses Matam aos Sábados” (I milanesi ammazzano al sabato).
Scerbanenco também se tornou famoso graças à cinematografia. Um filme muito popular dos anos setenta, “Milan Caliber 9”, é sobre o sub-mundo criminoso da cidade de Milão. Tarantino citou este filme de 1972 como um daqueles que fazem parte da genealogia da sua própria obra.
O autor Alessandro Trocino descreve os locais onde o próprio Scerbanenco viveu, onde o seu herói Duca Lamberti andou e investigou crimes, o que comeu, o que bebeu e em que tabernas, com quem se encontrou. Acontece que há tours que acontecem em Milão e normalmente começam numa praça, a Piazza Leonardo da Vinci. Há uma casa lá onde supostamente viveu o herói de Scerbanenco, Duca Lamberti. Hoje alberga um bar popular, a que os habitantes locais chamam simplesmente “pub”. As excursões pela Milão criminal começam na Piazza Leonardo da Vinci, à partir deste mesmo “pub”.
Alessandro Trocino, autor de um livro sobre Giorgio Scerbanenco, apresenta o seu herói da seguinte forma:
Claro que, como é habitual, foram feitas várias perguntas ao Alessandro Trocino: por que razão a fama chegou ao escritor só agora e por que razão foi tratado com condescendência na sua época. Trocino explicou que Scerba (esta é a versão abreviada, Scerbanenco é difícil para os italianos) alcançou a fama e o sucesso comercial só agora, pois surgiu no momento errado e com os textos «errados».
Como deve ser entendido? O seu último livro publicado em vida, um livro muito popular, saiu em 1969. A revolução europeia de 1968 ainda estava a acontecer. Por isso que a geração italiana da década de 1970 não leu Scerbanenco, que era considerado um autor de direita, quase fascista, o que não é verdade. Depois ele não entrou no clube dos grandes e maravilhosos escritores italianos daquela época, como Alberto Moravia ou Leonardo Sciascia, porque escreveu literatura de género, que era então considerada “quase literatura”, paraliteratura. Escreveu romances, ficção científica e westerns. Bem, é claro que se tornou famoso como escritor de romances policiais. Além disso, chegou à literatura vindo do jornalismo, e os jornalistas, em geral, não eram muito bem-vindos no Olimpo literário italiano.
O seu pai, morador de Kyiv, era professor de latim no ginásio e ainda jovem, em Roma, em viagem de negócios, apaixonou-se por uma mulher romana, Leda Giulivi, casando-se na Igreja Ortodoxa russa em Roma em 1909: Valerian Scherbanenko, cidadão russo, estudante ortodoxo, pertencente à pequena burguesia, casou com uma mulher católica romana, Leda-Maria Giulivi. O próprio Giorgio, no entanto, nasceu três anos depois em Kyiv e foi batizado nas margens do rio Dnipro com o nome de Volodymyr.
O filho do escritor, Alberto Scerbanenko, que vive na Suíça, explica que, de facto, não se ver a herança ucraniana na obra de Scerbanenco, embora o próprio Giorgio, no seu curto ensaio autobiográfico, tenha descrito os anos trágicos da revolução bolchevique no império russo.
Em 1920, Leda Giulivi, quando perdeu o marido nesse turbilhão revolucionário, decidiu ir para a cidade de Kyiv, já sob ocupação soviética, levando consigo o pequeno Giorgio. Na verdade, de acordo com o seu passaporte, ele nasceu Volodymyr. Por vezes, assinava a sua correspondência como Volodya – o seu primeiro nome diminuitivo, já que Giorgio é um pseudónimo literário, que tem o nome do seu falecido irmão.
Leda Giulivi, chegou a Kyiv, onde soube que o seu marido tinha sido executado. Não é muito claro quem o matou, mas, segundo testemunhas oculares, terão sido os bolcheviques. Regressaram a Itália, no clima de uma grande aventura (ficaram num campo de refugiados em Odessa, não eram libertados, já que não tinham os documentos apropriados e foram parar a Constantinopla). Scerbanenco já tinha 8-9 anos e mais tarde descreveu isso tudo num ensaio. Este, de facto, é o seu único texto sobre as suas raízes ucranianas.
O filho do escritor, Alberto Scerbanenko, também escreveu um livro sobre o pai. Em particular, o Alberto publicou um documento incrível sobre a questão das raízes. Acontece que após a morte de Giorgio, em 1971, a sua viúva dirigiu-se ao consulado soviético em Milão e deixou um pedido para procurar familiares do marido. Ela não recebeu qualquer resposta. Ainda hoje não se sabe ao certo que aconteceu ao pai do Giorgio, nem porque é que o futuro escritor se quis repatriar para a URSS em 1933 (aos 22 anos de idade), o que felizmente foi lhe negado.
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Alberto Scerbanenko: «As Cinco Vidas de Giorgio Scerbanenco» (2019). Os apelidos do pai e filho se escrevem de forma diferente. |
Durante a apresentação do seu livro, Alessandro Trocino utilizou constantemente o termo literário “giallo”, chamou “giallista” a Scerbanenco. Em Itália, “giallo” é um termo exclusivamente literário. Foi assim que começaram a chamar às histórias de ficção policial, que a maior editora, a Mondadori, começou a publicar em capa mole amarela no final da década de 1920. À partir dos anos 1930, todos as histórias policiais passaram a ser chamados de “giallo”. Sob o regime de Mussolini, o “giallo” foi proibido; só após a queda do regime fascista, o giallo voltou a florescer.
O surpreendente é que Trocino no seu título, chamou o “giallista” Scerbanenko do pai do noir italiano. O noir em Itália é novamente um género literário que difere do género policial habitual, pois a personagem principal não é necessariamente um investigador criminal, um detetive, mas, as vezes é uma vítima ou até um assassino.
O livro do filho do escritor continha muitas informações úteis, Alberto realizou uma catalogação completa dos pseudónimos do seu pai. Acontece que o nosso prolífico autor usou 45 pseudónimos! Alberto compilou então, as suas estatísticas — o que o seu pai tinha publicado.
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Giorgio Scerbanenco ao trabalho |
Categoria: romances: 92 romances, 26 foram publicados sob pseudónimos. A seguir estão os contos, mais uma vez, um número surpreendente – 1380 histórias! Depois, há categorias como ensaios filosóficos, coletâneas de poesia, peças de teatro, radionovelas, fotonovelas, histórias televisivas e, no total, o filho contou 4.016 obras do pai.
Do livro de Alberto Scerbanenko: “As cinco vidas de Giorgio Scerbanenco”, Milão, Editora Feltrinelli, 2019:
Alberto Scerbanenko, dividiu a vida do pai em cinco períodos, daí o título do seu livro: “Cinco Vidas”. A primeira vida – do nascimento à fuga do colapso do império russo para Itália. Assim, a sua segunda vida foi estabelecer-se em Milão em 1927 e trabalhar em áreas completamente diferentes: em bazares, como varredor e como barman, mas depois gradualmente entrou para o jornalismo. Esta é a segunda vida. A terceira vida é a fuga para a Suíça e o período do pós-guerra. Fugiu do fascismo, refugiou-se na Suíça neutra em 1943, depois regressou e continuou como jornalista. A quarta vida é a vida burgesa. Esta foi a década em que Scerbanenco se tornou uma figura literária bastante abastada, embora ainda fosse difícil chamar-lhe escritor. A última, quinta vida, é a fama internacional, já como escritor, desde 1960 até à sua morte em 1969, quase 10 anos. Na auge da sua fama internacional, com apenas 58 anos, Giorgio Scerbanenco morreu, tendo mal conseguido publicar o seu último e quarto romance sobre Duca Lamberti.
Na Internet, nas publicações, em vários sites, aparece um nome de Cecilia Scerbanenco, a sua filha. Acontece que após dez anos de casamento, o escritor deixou a sua esposa Teresa Scerbanenco-Bandini, a mesma que mais tarde foi para o consulado soviético, e o filho pequeno. E depois teve, uma outra mulher; mas não conseguiu divorciar-se da sua primeira e formalmente última mulher. Casaram-se na igreja católica; praticamente não havia divórcios naquela época.
Como resultado, viveram juntos durante muito tempo e desta parceria nasceram duas meninas, que Giorgio adotou legalmente. Isso não foi fácil, pois exigiu a autorização da sua esposa oficial, Teresa, com quem esteve casado para sempre. Assim apareceram duas meninas com o apelido de Scerbanenco.
De alguma forma o apelido Scerbanenco é, em geral, também um pseudónimo, uma vez que nos livros se escreve com “c” (Scerbanenco), mas deveria ser como nos documentos, com “k” (Scerbanenko). Descobriu-se que existem realmente duas versões do apelido do escritor escritas em latim. Todos os seus romances começam por “c” (Scerbanenco). E as suas duas filhas foram registadas com “c”. Uma delas, Cecília, que se destacou, publica os romances do pai com o mesmo nome, Scerbanenco. O nosso Alberto publicou a sua obra biográfica, ao que parece, com um apelido diferente, com “k” (Scerbanenko).
A filha Cecília está à vista de todos. Ela viaja até Kyiv e fundou o prémio literário para o melhor detetive italiano, batizado em homenagem a Giorgio Scerbanenco. Cecília, uns meses antes de Alberto, publicou um livro biográfico sobre o seu pai, que hoje se posiciona em todo o lado como a primeira biografia do escritor.
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O livro de Cecilia Scerbanenco: «O Fabricante de estórias. A vida de Giorgio Scerbanenco», 2018. |
Alberto Scerbanenko publicou um documento impressionante, com o qual começa realmente o seu livro, que impressiona o leitor. Um texto estranho que Giorgio Scerbanenco escreveu quando tinha 27 anos. Neste texto descreve a sua autodestruição. E retrata-se pessoalmente como uma espécie de robô, que se está gradualmente a desintegrar em pó, pedaço a pedaço.
Uma nota de 1938, descoberta por Alberto Shcherbanenko no arquivo do seu pai.
“A destruição de Giorgio Scerbanenco começou a 19 de novembro de 1929.
Scerbanenco, construído em 1911 segundo o modelo linear-linfático longo, com um intelecto pronto, ainda não estava concluído em todos os detalhes (os seus instintos e estrutura musculoesquelética não receberam os certificados necessários). (...) Um dia, a senhora Della Falce, ao passar pela casa onde vivia Giorgio Scerbanenco, viu o seu esqueleto envolto num tecido precioso e levou consigo esse tecido. Estávamos a 6 de dezembro de 1969.”
É surpreendente que o autor desta nota tenha mencionado o ano exato da sua morte, tendo-se enganado em apenas alguns meses. As datas fornecidas para o início da destruição – 1929, e a renúncia à consciência em 1938 – não são explicadas na publicação.
O destino do Giorgio Scerbanenco é muito interessante. Um estudante apaixonado, em Roma, numa igreja russa casa com uma mulher romana, regressam juntos a Kyiv, e depois – uma história quase policial. A sua mulher, juntamente com o pequeno Volodya, regressa a Itália, por algum motivo desconhecido, e a ligação com Valerian Afanasyevich Shcherbanenko é quebrada para sempre. Não responde a cartas, não sabemos mais nada sobre ele. A esposa dele está à sua procura.
Leda Giulivi chegou à contactar a embaixada soviética em Roma, com um pedido para encontrar o marido. E em Kyiv, em 1916, foi publicada um pequeno anúncio nem jornal local, dizendo que uma esposa italiana estava à procura do seu marido de Kyiv, e aqueles que conheciam Valerian Afanasyevich, por favor, avisem-no sobre isso. Estamos no final de 1916. Após a revolução, Leda Giulivi chegou a Kyiv já “vermelha” com o seu filho, à procura do marido desaparecido, não o encontrou, regressou a Itália e contou a todos que ele foi brutalmente morto pelos bolcheviques, executado, no pátio do ginásio juntamente com as crianças da escola. Os próprios bolcheviques não admitiram este crime.
Estranhamente, nunca ninguém investigou as circunstâncias exatas do desaparecimento e morte de Valerian Afanasyevich. Quem o matou e porquê? Vermelhos porque era branco, ou brancos porque era vermelho? Foram os ucranianos? Alemães? Polacos? Talvez tenha sobrevivido e desapareceu adotado um pseudónimo? Fugiu com uma nova mulher, com a nova companheira? Ainda não sabemos nada sobre isso, e talvez um novo «giallo» ou noir seja lançado sobre o caso.