O Kosovo é um exemplo de multilateralismo. A Ossétia do Sul é um caso flagrante de unilateralismo de uma grande potência.
Por: João Marques de Almeida* em Diário Económico
Entende-se perfeitamente que os russos, mestres em propaganda política, comparem o caso da Ossétia do Sul ao caso do Kosovo. É, porém, incompreensível que muitos europeus façam o mesmo. Antes de mais, como é possível dizer que o Kosovo constitui um “precedente”, se o problema da Ossétia do Sul (e da Abecásia) começou muito antes? As duas províncias da Geórgia são, de facto, “independentes” desde 1994, após os conflitos militares iniciados em 1992. As tropas russas estão nas regiões desde o mesmo ano e, na prática, têm garantido a defesa da “independência” desde então. Em 1994, o Kosovo estava plenamente integrado na Sérvia e nenhuma potência ocidental tinha planos expansionistas que incluíssem o apoio à “independência” unilateral da província. Se se pode falar em “precedente”, em relação a um grupo étnico não aceitar a autoridade do seu governo e tornar-se de facto “independente”, então a Ossétia precedeu o Kosovo.
Além da questão temporal, há ainda uma confusão em relação aos métodos usados nos dois casos. No caso do Kosovo, tudo começou com uma agressão de milícias sérvias, apoiadas pelo governo sérvio da altura. Comparar a intervenção da Geórgia nos dias 6 e 7 de Agosto com o que se passou no Verão e Outono de 1998 no Kosovo é, no mínimo, chocante para quem se preocupa com questões como as violações dos direitos humanos. Em 1999, todos os Estados Membros da União Europeia, incluindo os que entretanto aderiram e aqueles que ainda não reconheceram a independência do Kosovo, aceitaram a legitimidade da intervenção humanitária. E convém recordar o ambiente político da época. Em 1999, as recordações das tragédias da Bósnia estavam frescas e ninguém queria repetições. O medo de serem novamente acusados de nada fazerem perante massacres contra populações civis, cinco anos depois da Bósnia, foi o factor mais importante que levou os governos ocidentais a usar a força contra a Sérvia. Não foram ambições expansionistas, ou desejos de se criar uma “esfera de influência” do Ocidente nos Balcãs.
As Nações Unidas foram imediatamente envolvidas na gestão da questão do Kosovo e a Resolução 1244 do Conselho de Segurança (votada pela Rússia) colocou a região sob administração directa da ONU. Um caso idêntico ao de Timor – Leste. Quem considerar que a independência do Kosovo constitui um precedente para a “independência” da Ossétia do Sul, terá que achar o mesmo do caso de Timor-Leste. Será que a independência de Timor-Leste também justifica a “independência” da Ossétia? Para mim, é óbvio que não. Tal como o Kosovo também não justifica. Como é que as mesmas pessoas que em tantas situações percebem rapidamente a diferença entre o unilateralismo e o multilateralismo (por vezes, até percebem depressa de mais), desta vez ainda não conseguiram descobrir a diferença? O Kosovo é um exemplo de multilateralismo. A Ossétia do Sul é um caso flagrante de unilateralismo de uma grande potência.
Com a distinção entre multilateralismo e unilateralismo chegamos ao essencial da questão. Se se reconhecer legitimidade ao processo de “independência” da Ossétia do Sul e da Abecásia, e é isso que se faz quando se evoca o exemplo do Kosovo, então uma eventual comparação no futuro entre a Crimeia e o Kosovo também será legítima. O que se está a passar na Europa é o confronto entre dois paradigmas de política e de segurança internacional. Um, proposto pela União Europeia, procura a pacificação e a cooperação entre Estados soberanos e a resolução multilateral dos conflitos. O outro, praticado pela Rússia, apoia-se no uso da força militar e na resolução unilateral dos conflitos. Se triunfar o segundo paradigma, a política europeia voltará a ser dominada por conceitos como “esferas de influência” e “directórios dos grandes”. Incluindo as relações entre os Estados Membros da União Europeia. Convém pensar muito e bem antes de se comparar o Kosovo à Ossétia do Sul.
* João Marques de Almeida é Professor universitário
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