quarta-feira, fevereiro 21, 2024

«Intercepted»: as vozes polifónicas da mãe rússia

Documentário «Intercepted» é composto inteiramente por conversas telefônicas entre os ocupantes russos e as suas famílias, em que os militares russos confessam as violações, pilhagem e tortura brutal de civis ucranianos e dos prisioneiros de guerra. 

«Intercepted» da diretora ucraniana Oksana Karpovych foi exibido no festival de Berlim. Uma hora e meia de conversas telefônicas interceptadas de militares russos da Ucrânia com suas famílias. As citações não são 100% exatas, por serem adaptadas, mas transmitem a essência com a maior precisão possível. 

«Mãe, gostei tanto da tortura! Posso contar quais torturas aprendi e em que participei» (depois conta. Desculpem – não podemos repetir). – Filho, é normal. Se eu estivesse lá, também gozaria, será possível sentir de outra forma?» 

Sem comentários. Nenhum comentário será adequado ao que foi ouvido. Há um choque na sala. Silêncio por um minuto inteiro após o final do filme. Em seguida, o público se levanta e aplaude de pé. É raro ver uma imagem do mundo como esta em uma hora e meia. O famoso «mundo russo». 

«Não, não estou com raiva aqui – estou apenas matando nazistas. Ontem estávamos caminhando, encontramos uma mulher com dois filhos – bem, os derrubamos. – Bem feito, isso mesmo, eles são nossos inimigos. – Sim, não sinto pena deles. A escolha é deles. Eles poderiam ir embora como os outros. – Isso mesmo, não sinta pena deles. Porrada neles». 

«Você viu as bases da OTAN lá? – Não. – Não minta para mim – as bases deles estão à cada passo, nos contaram na TV. – Não assista TV, mãe – eles contam mentiras aí. – Como isso não seja verdade? É claro que é verdade. É por isso que você foi enviado para lá para nos proteger da OTAN. Vocês são heróis. Repasse isso aos seus amigos. – Quase não sobraram amigos – todos foram mortos. «Estou orgulhoso de você e de seus amigos». 

«Você sabe, esses os ucros malvados vivem tão bem – melhor do que nós, na verdade. – Bem, é claro – Ocidente lhes paga, eles têm medo de perder e lutam por isso – por quê outra coisa seria?» 

«Vou trazer tantas roupas para você e para as crianças – estamos aqui no apartamento agora, eles abandonaram tudo, fugiram. Uma família tão desportiva – dez pares de tênis, e todos de marca. Juntei tudo, coloquei na mochila. Os rapazes tiram com caminhão, mas eu não tenho caminhão. – Tu és o meu bom menino – tudo trazes para casa. A propósito, Sofia vai para a escola este ano – talvez você possa levar um computador de algum lugar?» 

Nestas conversas, as vozes vindas da rússia são muito mais interessantes do que as vozes dos ocupantes. Com os militares tudo está claro – vieram para roubar, matar, torturar. Mas são as vozes das mulheres – mães, esposas, namoradas – que mostram um tal grau de desumanização que só é possível, ao que parece, numa fantasia distópica. Estas vozes amorosas pedem mais mortes para que os entes queridos possam voltar para casa mais cedo. Estas vozes desejam a morte aos ucranianos. Estas vozes pedem para não poupar as crianças ucranianas. 

«Mãe, por que viemos aqui? As pessoas viviam felizes e agora semeamos metade do país com as cadáveres. Por que? – Não se atreva a dizer isso. Eles nem são as pessoas. Lute».

A pátria mãe russa.

E os seus filhos da puta.

por Kateryna Barabash, crítica de cinema.

Bónus

A curta «Involuntariamente» (realizador Zhora Kryzhovnikov, 2014), HD

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