por: Nuno Rogeiro *
Amanhã, as comunidades ucranianas de todo o Mundo lembram o Holodomor, ou "Grande Fome", de 1932-33. Trata-se, segundo uma vasta corrente de opinião, do primeiro genocídio praticado por um regime totalitário, durante o século XX. Muito antes do Holocausto, e a décadas de distância dos campos da morte dos Khmer Vermelhos, no Camboja. No início da URSS, a Ucrânia, segunda maior república, era considerada a chave para o sucesso da revolução bolchevique. Mas havia um problema grave para os comunistas, quer da persuasão leninista quer da subsequente facção "napoleónica", ou estalinismo.
É que a Ucrânia tinha alguma experiência de propriedade privada da terra. Oitenta e um por cento dos seus cidadãos eram camponeses, e destes muitos gozavam de prosperidade relativa.
Para a nova ordem moscovita, os ucranianos estavam "contaminados".
Contaminados por fidelidades à antiga ordem, por atitudes "burguesas" e "idealistas", por doutrinas contra-revolucionárias, por ligações aos exércitos reaccionários de "russos brancos", por simpatias ou infiltrações alemãs e polacas, e, claro, pela adesão ao "ópio das massas", a religião.
O "problema ucraniano" precisava de ser resolvido. De forma definitiva e exemplar.
"Resolver o problema" significava, claro, coagir, ou eliminar, a grande maioria. Os camponeses, que viviam, sobretudo, da produção e comercialização de cereais (a Ucrânia era o celeiro da URSS).
A vitimização dos agricultores não foi nem acidental, nem produto de circunstâncias naturais catastróficas, nem comparável a outras tragédias no quadro soviético da altura. Traduziu-se na colectivização dos antigos domínios dos "kulaks" (abastados) e "seredniaks" (remediados), os camponeses independentes que cresceram na antiga Ucrânia dos czares, e por todo o Império, a partir das reformas liberais de Piotr Arkadyevich Stolypin, em 1906.
As novas leis do visionário primeiro-ministro de Nicolau II permitiam ao trabalhador rural, até aí uma espécie de servo da gleba medieval, adquirir propriedade, em troco de trabalho. Em apenas seis anos, mais de 16% de antigos camponeses sem direitos, por todo o território imperial, passaram à condição de pequenos, médios e até grandes proprietários.
Na Ucrânia, a percentagem era ainda superior. O novo estado "federativo socialista" de Kiev tornara-se assim em perigoso bastião de livre iniciativa, numa URSS impaciente por instaurar a "ditadura do proletariado".
Onde Lenine hesitara, ou tentara adiar, ou minimizar, Estaline decidiu agir, sem rodeios. O extermínio dos "camponeses ricos" traduzia-se na colectivização de todas as explorações, na apropriação forçada de cereal, remetido para os planificadores (não panificadores) de Moscovo, e na deportação, para a Sibéria, de todos os resistentes.
Numa vaga de sofrimento sem par, as famílias agrárias foram desapossadas de tudo. Os seus numerosos membros (entre seis a 12 pessoas por proprietário), incluindo crianças de tenra idade, pairavam pelas cidades como mendigos cadavéricos, que morriam nas ruas, às centenas. Aldeias e vilas foram riscadas do mapa.
Há uma estimativa de sete milhões de mortos.
Este martírio não entrou nas primeiras páginas dos jornais, durante muito tempo. Por isso deve ser duplamente lembrado.
É um exemplo das experiências alucinadas de tiranias supostamente "racionais", ou defensoras da "humanidade".
Em boa verdade, todos os carniceiros se disfarçaram de cordeiros.
* Nuno Rogeiro é um jornalista e comentador político de prestígio em Portugal, um dos co-apresentadores do programa Sociedade das Nações na SIC.
Fonte:
http://jn.sapo.pt/paginainicial/interior.aspx?content_id=1431618
A imagem do Holodomor é de responsabilidade deste blogue.
Amanhã, as comunidades ucranianas de todo o Mundo lembram o Holodomor, ou "Grande Fome", de 1932-33. Trata-se, segundo uma vasta corrente de opinião, do primeiro genocídio praticado por um regime totalitário, durante o século XX. Muito antes do Holocausto, e a décadas de distância dos campos da morte dos Khmer Vermelhos, no Camboja. No início da URSS, a Ucrânia, segunda maior república, era considerada a chave para o sucesso da revolução bolchevique. Mas havia um problema grave para os comunistas, quer da persuasão leninista quer da subsequente facção "napoleónica", ou estalinismo.
É que a Ucrânia tinha alguma experiência de propriedade privada da terra. Oitenta e um por cento dos seus cidadãos eram camponeses, e destes muitos gozavam de prosperidade relativa.
Para a nova ordem moscovita, os ucranianos estavam "contaminados".
Contaminados por fidelidades à antiga ordem, por atitudes "burguesas" e "idealistas", por doutrinas contra-revolucionárias, por ligações aos exércitos reaccionários de "russos brancos", por simpatias ou infiltrações alemãs e polacas, e, claro, pela adesão ao "ópio das massas", a religião.
O "problema ucraniano" precisava de ser resolvido. De forma definitiva e exemplar.
"Resolver o problema" significava, claro, coagir, ou eliminar, a grande maioria. Os camponeses, que viviam, sobretudo, da produção e comercialização de cereais (a Ucrânia era o celeiro da URSS).
A vitimização dos agricultores não foi nem acidental, nem produto de circunstâncias naturais catastróficas, nem comparável a outras tragédias no quadro soviético da altura. Traduziu-se na colectivização dos antigos domínios dos "kulaks" (abastados) e "seredniaks" (remediados), os camponeses independentes que cresceram na antiga Ucrânia dos czares, e por todo o Império, a partir das reformas liberais de Piotr Arkadyevich Stolypin, em 1906.
As novas leis do visionário primeiro-ministro de Nicolau II permitiam ao trabalhador rural, até aí uma espécie de servo da gleba medieval, adquirir propriedade, em troco de trabalho. Em apenas seis anos, mais de 16% de antigos camponeses sem direitos, por todo o território imperial, passaram à condição de pequenos, médios e até grandes proprietários.
Na Ucrânia, a percentagem era ainda superior. O novo estado "federativo socialista" de Kiev tornara-se assim em perigoso bastião de livre iniciativa, numa URSS impaciente por instaurar a "ditadura do proletariado".
Onde Lenine hesitara, ou tentara adiar, ou minimizar, Estaline decidiu agir, sem rodeios. O extermínio dos "camponeses ricos" traduzia-se na colectivização de todas as explorações, na apropriação forçada de cereal, remetido para os planificadores (não panificadores) de Moscovo, e na deportação, para a Sibéria, de todos os resistentes.
Numa vaga de sofrimento sem par, as famílias agrárias foram desapossadas de tudo. Os seus numerosos membros (entre seis a 12 pessoas por proprietário), incluindo crianças de tenra idade, pairavam pelas cidades como mendigos cadavéricos, que morriam nas ruas, às centenas. Aldeias e vilas foram riscadas do mapa.
Há uma estimativa de sete milhões de mortos.
Este martírio não entrou nas primeiras páginas dos jornais, durante muito tempo. Por isso deve ser duplamente lembrado.
É um exemplo das experiências alucinadas de tiranias supostamente "racionais", ou defensoras da "humanidade".
Em boa verdade, todos os carniceiros se disfarçaram de cordeiros.
* Nuno Rogeiro é um jornalista e comentador político de prestígio em Portugal, um dos co-apresentadores do programa Sociedade das Nações na SIC.
Fonte:
http://jn.sapo.pt/paginainicial/interior.aspx?content_id=1431618
A imagem do Holodomor é de responsabilidade deste blogue.
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