Não foi principalmente a Internacional, hino socialista, mas a Marselhesa, que acompanhou as jornadas revolucionárias da Rússia de 1917. Quando, há 90 anos, no 7 de novembro (25 de outubro, pelo antigo calendário juliano), os bolcheviques tomaram o poder em Petrogrado, narrou-se o evento como a sequência inevitável da Revolução Francesa de 1789. A nossa era histórica afigurava-se como uma longa transição entre o poder dos homens de 'sangue azul' e a sociedade sem Estado ou classes sociais prometida pelos comunistas.
A modernidade, definida em 1789, ergueu-se sobre o tenso compromisso entre os princípios da liberdade e da igualdade. A Revolução de Outubro, em nome da igualdade, aboliu completamente a liberdade. Ela não foi moderna e seu arcaísmo reflectiu-se no culto ao Líder. Karl Marx ofereceu ao proletariado a chave da História. Lenin transferiu-a para um Partido. Stalin concluiu o movimento, guardando-a em seu próprio bolso. O corpo embalsamado de Lenin repousa, até hoje, num mausoléu de mármore na Praça Vermelha.
Intelectuais de esquerda justificam o 'socialismo real' sob o argumento de que o sistema totalitário acelerou a modernização industrial e, no fim, propiciou a vitória na guerra contra o nazismo. Nas sete décadas da URSS, o PIB do país cresceu menos que o dos EUA ou o do Brasil. A crise de fome que acompanhou a colectivização rural soviética só foi superada pelas tragédias incomensuráveis da China maoísta. Uma falsa narrativa da Segunda Guerra Mundial contamina manuais de história e livros didácticos escritos pelos órfãos de Outubro. A URSS fez a guerra ao nazismo apenas depois que a aliança com a Alemanha foi rompida, por iniciativa de Hitler.
Marx imaginou o socialismo como uma transição para o comunismo, o 'reino de abundância' no qual trabalho e prazer se tornariam faces inextricáveis da plenitude da experiência humana. A URSS flertou com a militarização do trabalho, proibiu a organização sindical independente e ergueu o sistema de campos de concentração do Gulag para promover a conquista da Sibéria. Walt Rostow estava certo quando qualificou o socialismo como uma 'doença da modernização do capitalismo'. As suas manifestações atuais, especialmente na China, continuam a fascinar uma esquerda que se recusa a aprender com a história.
É um equívoco traduzir a oposição entre capitalismo e socialismo como uma alternativa entre mercado e Estado. Não existe mercado sem Estado, a não ser na forma primitiva do escambo. Estado sem mercado é o que existiu, e fracassou, na URSS. A abolição do mercado gerou uma desastrosa alocação de investimentos e destruiu os impulsos de criatividade e inovação. A economia soviética ruiu sob o peso de uma imensa massa inútil de cimento, aço e máquinas. O segredo da eficiência do capitalismo está na teia de empresas pequenas e médias que não podem ser replicadas pelo Estado – Leviatão. A esquerda que não entendeu isso procura no capitalismo de Estado um sucedâneo para o socialismo.
A liberdade é indivisível. No poder, os bolcheviques esmagaram primeiro a liberdade da 'burguesia' e, em seguida, a do 'proletariado'. A URSS converteu-se numa prisão de seus cidadãos, enquanto os comunistas, no mundo inteiro, proclamavam o carácter 'burguês' da democracia. No Ocidente, em contraste, a democracia propiciou o desenvolvimento dos movimentos sociais, que transformaram por dentro o capitalismo. É por isso que, com a universalização dos direitos políticos e sociais, desapareceram tanto o Estado liberal do século XIX como o impulso da revolução socialista.
A utopia comunista percorreu um ciclo completo. Depois da queda do Muro de Berlim, os partidos comunistas extirparam o marxismo – leninismo de seus programas e trocaram seus nomes de baptismo, na esperança de rescrever a própria história. Essa operação de linguagem remete a Revolução de Outubro, de uma vez por todas, para o passado. Outubro, agora, é só um mês no calendário.
DEMÉTRIO MAGNOLI é sociólogo e doutor em geografia humana pela USP
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