sexta-feira, outubro 14, 2005

Katrina à preto e branco

A passagem do furacão Katrina, conseguiu expor muitas das fragilidades da primeira superpotência mundial. As questões "malditas", do tipo "Quem é culpado" e "O que fazer", estão nas bocas do todo o Mundo. Hoje, queremos apresentar duas visões diferentes, vindas de Portugal e do Brasil. Os leitores poderão fazer os seus próprios juizos de valor.

Na América, como em África, quem menos ajuda os negros, são os negros, diz a jornalista portuguesa Clara Ferreira Alves, num artigo seu, publicado em Portugal, no dia 14 de Setembro.
“Toda a gente sabe que existe na América, tanto em Hollywood e Los Angeles, em Chicago, em Nova Iorque, um clube de milionários negros, poderosíssimos, que controlam o mercado da música rap que domina o mundo, controlam o merchandising da música rap e controlam o mercado consumidor desse merchandising.
Mas, alguém viu da parte desta gente, que se caracteriza pelo consumo conspícuo de moda de alta costura, de diamantes, de roupas caríssimas, de iates e carros, de jactos privados, e de um estilo de vida ostentosos à boa maneira dos líderes africanos corruptos, alguém viu, dizia eu, um grande movimento de solidariedade e ajuda financeira aos seus irmãos negros do sul? Alguém viu P. Diddy, Lill Kim, Russell Simmons, Quincy Jones, Mary J. Blige, e os milhares de rappers milionários de Chicago, Nova Iorque e da Califórnia, fazer o que fizeram alguns actores e celebridades de Hollywood e ajudar, ou abraçar, um desgraçado que perdeu a família e os bens no Katrina?
Alguém viu o reverendo Jesse Jackson, ou Eddie Murphy, ou inefável reverendo Al Sharpton, ou mesmo os pugilistas Mike Tyson (e de Michael Jackson e da sua família nem é bom falar) levantarem a voz e a mão num gesto altruísta? Só Oprah Winfrey o fez, e tem feito, e continua a fazer. O resto, não existe, ou existe egocentricamente. Corruptamente”.

O nosso leitor do Brasil, Custódio Duma*, têm uma visão diferente

Ao analisar o drama de New Orleans, que realmente chocou o mundo inteiro, a jornalista questiona-se pelo facto dos negros ricos e abastados dos Estados Unidos não se sensibilizarem e nem se solidarizarem com seus irmãos negros a ponto de não aparecerem publicamente manifestando seu apoio, não só moral, mas financeiro e, sobretudo material, as vitimas da devastadora Katrina, deixando esta responsabilidade nas mãos dos brancos e da menina de ouro Oprah Winfrey, citada como sendo a única com maior consciência social.
Mas proponho-me a discutir algumas idéias levantadas pela jornalista sobre o olhar tranquilo e indiferente de alguns negros, face ao que se vive em New Orleans.
Em primeiro lugar, é importante notar que os problemas levantados pela jornalista incidem na cor dos indivíduos e não na sua dignidade como pessoas humanas. A solidariedade não deve estar confinada a gente da mesma cor, mesma nacionalidade, mesmas crenças ou quaisquer outras afinidades. Nem por isso merece maior atenção deles. A solidariedade, como se compreende na etimologia da palavra, é de quem pode para quem não pode, não interessa com quanto pode ou como pode. Sendo que ninguém devia orgulhar-se por ajudar certo tipo de gente, mas por estar a contribuir no bem estar de pessoas humanas. Embora todos os homens estejam convidados à solidariedade, este acto é extremamente voluntário, gratuito e de coração, sendo que ninguém deve sentir se impingido ou constrangido a ajudar. Falando em solidariedade, alguém uma vez afirmou que: o que a tua mão direita faz não o saiba a esquerda.
Na América, como em África, quem menos ajuda os negros são os negros, assim diz a jornalista. Não sei até que ponto essa afirmação é verdadeira. Mas um ponto muito importante nisso, é a situação de vulnerabilidade a que os negros do mundo se encontram. Não precisarei descrever as condições sócio-econômicas a que os negros de New Orleans estão votados, vivendo num submundo e praticamente sem condições mínimas de cidadãos. Num país como os Estados Unidos, entende-se desde logo que isso é o resultado de falta de políticas públicas viradas ao bem estar daquelas pessoas.
Posso afirmar que essa falta de políticas públicas viradas ao negro nos EUA é voluntária e intencional, na medida em que o país é quase o determinador da economia do mundo. Sabendo que o poder político e maior parte do poder econômico nesse país não pertence aos negros, vemos que não são eles quem menos ajudam.
É importante notar que mais do que de solidariedade, as pessoas de qualquer parte do mundo necessitam é de políticas públicas inclusivas. A vida das pessoas humanas não deve depender da solidariedade ou da boa vontade dos ricos e abastados. O cidadão cria o Estado para que este garanta o mínimo necessário, para manter a sua dignidade como pessoa.
A demais, olhando para a evolução histórica da economia global, vemos que desde os seus momentos primitivos, uma minoria de homens investiu bastante na construção de uma relação de dependência em relação à maioria. E essa dependência ganhou maior dimensão e destreza na relação entre o norte e o sul do Equador. Ou seja, colocar o negro numa situação precária e de dependência, a fim de que ele não consiga por si mesmo obter o mínimo necessário à pessoa humana. Se os negros tiverem alguma culpa nisso, será com certeza a sua indiferença quanto ao assunto, a corrupção generalizada e a falta de transparência nos sistemas de governo. Pois é já também, o tempo dos africanos compreenderem, que as ajudas solidárias constituem um instrumento de construção dessa dependência, investindo na corrupção e na pobreza absoluta dos negros, em benefício daqueles que vão ditando as regras.
Sobre o racismo dos negros contra os negros, citado no mesmo texto, mais uma vez encontramos aqui a relativização dos problemas que deviam ser enfrentados na generalidade. O racismo é racismo, seja ele praticado por negros ou brancos e deve ser condenado por todos independentemente de quem parte e a quem é direccionado. Não há juízo de valores quando se trata de problemas como o racismo, pois todo o racismo deve ser negado e condenado na mesma proporção. É, pois nossa obrigação como humanos, lutar contra o fosso entre as pessoas e não entre as cores ou lugares. É nossa obrigação construir em nossas mentes a consciência e noção de humanidade e de igualdade, assumindo que todos somos partes do sistema, com mesmas obrigações e direitos, sendo que as barreiras muitas vezes levantadas entre nós considerando a cor, raça, sexo, naturalidade, condição social e até graus acadêmicos, só reduzem ao ridículo todos os nossos discursos e acções.

*Advogado moçambicano, fazendo no Brasil a pós – graduação em Direitos Humanos e Democracia, e-mail: cdnesta2@yahoo.com.br

1 comentário:

Anónimo disse...

De facto esta questão já foi discutida por muitos e até levantou alguma "poeira". Alem, de tudo o assunto não é novo, mas permite me deixar a minha franca opinião.

Eu tive a sorte de ler or dois artigos "completos" e acho que os dois tem a razão de existir. MAS, Do meu ponto de vista numa catástrofe como Katrina, não devemos olhar para cores e dizer que o governo "branco" falhou no seu dever e milionários "pretos" não ajudaram e não sentem pena - isto é evidente, mas não nós leva longe. Devemos, sim, tentar RESOLVER o problema sem mencionar as cores, i.e. nem a cor branca nem preta nem amarela nem dourado...!!! Devemos motivar as pessoas a ajudar ao próximo independentemente da cor!

Atenciosamente
V.

p.s. Sabiam que de acordo com a estrutura governamental dos estados o presidente do município e governador do estado tinham autoridade e MEIOS para evacuar as pessoas, mas também falharam. Eu não sabia disso.... e também zangava somente com o Mr.Bush!!!