segunda-feira, janeiro 14, 2008

Ucranianos pedem reconhecimento do Holodomor

Os ucranianos pedem o reconhecimento da “Grande Fome” (Holodomor)

“Bem-aventurados os que têm fome e sede
de justiça, porque serão saciados”
Evangelho segundo S. Mateus

“Foi mais fácil acreditar que essas inúmeras
vítimas tinham sido sacrificadas em nome de uma causa superior”
Andrei Sakharov
(Memórias: Andrey Sakharov, Londres, 1990, p.164)

Os setenta e quatro anos da dominação soviética foram verdadeiramente trágicos para o povo da Ucrânia – três Holodomores* (dos anos 1921-1923, 1932-1933 e 1946-1947), múltiplas deportações, o terror físico e moral… “A ditadura do proletariado” experimentou todas as modalidades de repressão no nosso país.
Há duas nuvens particularmente negras que obscurecem o mito das “conquistas do socialismo soviético”. Uma é representada pelas repressões sangrentas dos anos 30, a outra é constituída pelo Holodomor, que devastou a Ucrânia Soviética em 1932-1933, o qual, segundo os dados actuais, causou entre 3 a 7 milhões de vítimas.
A causa inicial desta fome reside na decisão de Stalin em aumentar a quota de fornecimento de cereais, em 44%, para a Ucrânia, em 1932. Importa também destacar a circunstância do grupo social dos camponeses mais desafogados (os “kulaks”), que Stalin pretendia exterminar, estar, em grande medida, concentrado na Ucrânia.
A fome era terrível: desapareciam aldeias inteiras; as pessoas comiam animais de estimação e as próprias sementes destinadas à futura sementeira (o que foi interpretado pelas autoridades como “furto da propriedade socialista”, tendo sido reprimido de forma violenta, com recurso à pena capital); o canibalismo generalizou-se. Para travar a fuga em massa de camponeses, dos territórios atingidos pela fome, foram introduzidos os passaportes internos. Por outro lado, destacamentos de guardas armados foram colocados ao longo da fronteira ucraniana, impedindo o êxodo dos camponeses famintos.
No quadro “O Homem em Fuga” (1934) do pintor Kazimir Malevich, está representado um camponês que corre através de uma paisagem desolada. Esta obra, plena de simbolismo, é considerada um dos mais significativos testemunhos artísticos daqueles horríveis acontecimentos.
O Holodomor teve consequências traumatizantes, cujos efeitos ainda se fazem sentir, nomeadamente a sua quase ausência na nossa memória colectiva. Ficaram profundamente debilitadas as “reservas” sociais e culturais da identidade ucraniana, assentes no mundo rural. Aumentou o fluxo migratório dos campos para as cidades, onde os camponeses recém-chegados adoptaram os valores oficiais da cultura soviética; por sua vez, os intelectuais ucranianos, que eram mais sensíveis às raízes culturais do seu povo, foram silenciados, esquecidos ou eliminados.
Durante a década de 30, os meios intelectuais da URSS foram vítimas, de uma repressão particularmente feroz, que constitui mais um capítulo “esquecido” da era soviética. Na Ucrânia, essas perseguições foram especialmente dramáticas, destacando-se, em relação às outras repúblicas soviéticas, pelo seu número de vítimas e pela sua extensão temporal. Segundo várias estimativas, 80% dos intelectuais ucranianos foram fuzilados ou enviados para os campos de concentração, enquanto o Partido Comunista da Ucrânia foi sujeito a violentas purgas, em 1932-1934 e 1937-1938.
Em resultado de uma dupla eficácia – propagandística e repressiva - o regime soviético não ficou descredibilizado até ao momento em que se começaram a revelar as “páginas em branco” da História Soviética, nos finais dos anos 80.
Por fim, gostaria de fazer algumas considerações sobre a questão do reconhecimento do Holodomor como genocídio, tendo em consideração os princípios do Direito Internacional. Segundo a definição consagrada na Convenção para a prevenção e a repressão do crime de genocídio, aprovada pela ONU, em 1948: “ (…) entende-se por genocídio qualquer dos seguintes actos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal: matar membros do grupo; causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo; submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial; adoptar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; efectuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo.”
Actualmente, já não existem dúvidas de que o Holodomor foi uma fome artificial, tendo sido provocada e instrumentalizada por razões políticas e ideológicas
Para a Ucrânia, este crime do regime comunista representa uma verdadeira tragédia nacional, um golpe violentíssimo contra o património vital da Nação. No entanto, há quem insista em perguntar: “O extermínio dos camponeses, enquanto ucranianos, foi o objectivo final do Holodomor, ou a sua morte é apenas uma consequência da política do regime comunista contra os camponeses, enquanto classe?” Tais interrogações, são, no mínimo, pouco éticas.
Um dia saberemos, através da abertura de alguns arquivos ainda mantidos secretos, o que é que Stalin e os seus cúmplices planearam efectivamente. Mas, quanto às consequências da política desenvolvida pelo regime estalinista, essas já são amplamente conhecidas, sendo, assim, possível fazer a sua avaliação histórica e jurídica. E são precisamente essas consequências, que conferem ao Holodomor o carácter de genocídio, de acordo com as normas do Direito Internacional.
Quando os parlamentos de 15 países, incluindo alguns da Europa, já reconheceram o Holodomor como um acto de genocídio, deixa de fazer qualquer sentido discutir terminologias; trata-se simplesmente de um acto simbólico.

Infelizmente, a “racionalidade” política e económica vigente nas relações internacionais, é muitas vezes contrária à voz da consciência e ao princípio da justiça. Se em alguns momentos da História do Século XX, essa mesma “racionalidade”, sob a capa da “Realpolitik”, não tivesse pactuado com os crimes cometidos por impérios totalitários, o mundo de hoje poderia ser bem diferente.
Por tudo isto, os ucranianos esperam que os países democráticos e civilizados reconheçam o Holodomor como um acto de genocídio, bem como a importância desse acto de justiça histórica. Tal reconhecimento, seria excepcionalmente importante para a Ucrânia, com vista à sua plena integração na comunidade das nações livres e democráticas.
No dia 24 de Novembro de 2007, no âmbito das comemorações do “Dia Nacional em Memória das Vítimas da Fome”, por toda a Ucrânia foram acesas velas. O mesmo gesto foi feito, em Portugal, pela terceira maior comunidade imigrante, bem como por meio milhão de ucranianos e seus descendentes, no estado brasileiro do Paraná, ou na cidade de São Paulo; pelos ucranianos que residem em Angola e em Moçambique.
Acreditamos que não existem outros valores civilizacionais, além dos de natureza ética. A dor de cada povo deverá ser partilhada por toda a Humanidade, condição fundamental para a construção de um mundo mais tolerante.
Por isso, convidamos todos que não são indiferentes a essa partilha, para que se solidarizem, participando!

Mariya Dets,
Presidente da Associação dos Ucranianos em Portugal

Sem comentários: