terça-feira, setembro 13, 2011

Desporto, jeans e comunismo

Tal como Alemanha nazi, os diversos regimes comunistas desde sempre usaram o desporto para provar alegada superioridade da sua ideologia frente a democracia ocidental. Apesar do enorme volume de informação sobre o assunto, ainda hoje é possível encontrar no Ocidente os ingénuos que creiam que os atletas vindos atrás da Cortina de Ferro superavam os seus companheiros ocidentais apenas por causa do “amor à camisola” ou coisas do género... 

Após a II G.M., quando os países socialistas se engajaram no movimento olímpico, os respectivos governos começaram usar os atletas como a prova viva do que o desporto socialista é superior aos seus congéneres capitalistas. Este, por sua vez, era constantemente descrito na propaganda comunista como “inundo de doping e droga”, acusado de exigir os “resultados a qualquer custo”, na base da “concorrência capitalista desumana”. 

A primeira vantagem dos países socialistas residia no facto do que os seus atletas eram profissionais, competindo com os amadores ocidentais. (O bardo soviético Vladimir Vysotsky, na sua canção “Profissionais” dizia que os profissionais canadianos recebem “grandessíssimos milhares”, mesmo “pela derrota, mesmo pelo empate” e “os nossos rapazes recebem o mesmo salário”). Além disso, cada país socialista criava as suas próprias técnicas para superar o adversário ideológico. Por exemplo, RDA possuía as instalações onde os atletas treinavam no ambiente de pressão atmosférica superior à normal, treino que proporcionava as vantagens em comparação com os atletas que não possuíam este tipo de preparação. 

O apoio que URSS dava aos seus atletas de alta competição era menos tecnológico, talvez porque a alta tecnologia soviética teve apenas duas prioridades: a defesa e o cosmos. Os atletas soviéticos de alta competição eram afectos às Sociedades Desportivas Voluntárias (DSO), tais como Lokomotiv (Caminhos de Ferro), Metallurg (indústria metalúrgica), Avangard (movimento sindical da Ucrânia), Dynamo (Ministério do Interior) ou CSKA/SKA (exército). Nestas sociedades os atletas eram registados como operários, trabalhadores ou funcionários, embora vinham às unidades onde alegadamente trabalhavam apenas nos dias em que lá iam receber o seu salário. 

Por outro lado, os subsídios que os desportistas soviéticos recebiam do estado eram absolutamente ridículos, comparados com os valores auferidos pelos seus companheiros ocidentais. Por exemplo, o medalha europeu de prata de um desporto individual, recebia no início dos anos 1980, a quantia de 95 copeque por hora, que somava 7,60 rublos por dia e 228 rublos por mês (menos impostos). Ao câmbio oficial daquela época este valor equivalia aos cerca de 380 USD (com limite de 200 USD por pessoa por cada viagem ao estrangeiro, salvo seja). No entanto, no mercado paralelo, este mesmo valor dava para comprar uns 114 USD (ao câmbio livre dos especuladores). A título de exemplo, o salário mínimo soviético na mesma época era de 70 rublos, uma bicicleta custava entre 70 à 100 rublos, um carro entre 3.500 (Oka VAZ-1111) à 10.000 (Volga GAZ-24) rublos. 

No entanto, o desporto era uma das poucas maneiras legais que o cidadão soviético tinha para viajar pelo mundo e até de fazer algum negócio lucrativo. As pessoas competiam, lutavam, ganhavam os torneios e até conseguiam trazer do estrangeiro os produtos do dito “consumo popular”, em grande procura no país do socialismo triunfante. Um dos itens muito desejados era a simples calça jeans, de preferência Lee, Lewis ou Wrangler (na URSS não se conheciam outras marcas). Um par destas jeans, se forem genuínas, ou como se dizia de “firmá” custava 100 rublos e era vendido em um instante. Os desportistas mais instruídos traziam do Ocidente apenas as peças que componham os jeans: fecho ziper, os botões, a linha amarela e mais importante a aplicação rectangular de cabedal cozida atrás na cintura que continha as letras mágicas: Lee, Lewis ou Wrangler. Só os jeans com estas aplicações eram consideradas “firmá” e como tal, eram muito valorizados pelos alfaiates que se dedicavam à fabricação dos jeans “genuínos”. 

Outro item de roupa trazido do estrangeiro, muito apreciado e copiado na URSS nos anos 1970-1980 eram os casacos “Montana”. Tinham a cor preta ou mais raramente azul escura, feitas de nylon, possuíam dois fechos ziper de dentes grossos nos bolsos e a inscrição branca “Montana” por cima do coração. Já nos anos 1980-1990 “Montana” foi destronado pelo casaco “Alasca” (conhecido no Ocidente com Snorkel Parka N3B) e na década de 1990 o mercado e o coração das pessoas foi ganho pelos casacos de penugem chineses. 

Entre outros itens que os desportistas traziam do Ocidente se podem mencionar os aparelhos de rádio (os que tinham ondas curtas deveriam ser registados na polícia por causa da possibilidade de seus proprietários escutarem “vozes”). Este eufemismo soviético designava as estações de rádio estrangeiras, entendia-se “do inimigo”, que emitiam para o território da URSS as notícias e mais diversos programas em russo, ucraniano e em algumas outras línguas faladas no país. Faziam parte do grupo as estações tão diversas como “Voz de Pequim”, “Rádio Vaticano”, BBC, “Voz da América”, “Deutsche Welle” ou “Rádio Liberdade”. Todas estas rádios viam periodicamente as suas emissões interrompidas pelas interferências emitidas de propósito por estações soviéticas especiais. A BBC ou “Voz de América” eram menos interrompidas (por serem mais conservadoras e menos incómodas), já a “Rádio Liberdade” era o alvo preferencial das interrupções, chamadas popularmente de “abafadores”.  

Outro artigo cultural muito procurado e de fácil revenda eram os discos de vinil, principalmente dos ABBA ou Bonney M. Ambos os grupos eram tolerados pelas autoridades soviéticas e como tal, os seus discos podiam entrar na URSS de forma legal. Por vezes, dentro daqueles envelopes de cartolina entrava na União Soviética a música “subversiva”, Julio Iglesias aqui, Scorpions ali, mas isso é uma outra história. 

Também vale a pena recordar, que praticamente até aos últimos dias da sua existência, na URSS o maior crime que o cidadão poderia cometer não era o assassinato, nem o estupro, nem o roubo de grandes proporções. Um dos maiores crimes era a fuga para o estrangeiro, ou mesmo a tentativa de fuga, ou até a sugestão de fuga, se calhar até o pensamento. Por isso, nas suas deslocações ao estrangeiro, mesmo se for para os países socialistas, os atletas soviéticos eram “aconselhados” pelas vigias do KGB (cada grupo de viajantes tinha um, chamado “mamka” ou seja mamãe, sem contar com os habituais delatores de costume) a não se deslocar para lado algum sozinho, mas de preferência em grupos de 3 – 5 pessoas. (No seu conto “Um dia de Ivan Denisovitch”, Alexander Soljenitsin descreve uma prática semelhante instalada nos campos de concentração soviéticos, onde os prisioneiros eram fortemente “desencorajados” de andarem sozinhos, apenas em grupo, mesmo se for para o posto médico ou para as retretes). Houve tempo, quando os atletas e outros viajantes soviéticos andavam literalmente de mãos dados, se A quiser fugir, os B, C e D o poderiam agarrar e vice-versa. Na época de Brejnev, quando as pessoas perderam a fé comunista completamente e apenas diziam publicamente aquilo que gozavam em privado, os costumes já eram mais “liberais”. No entanto, lembro me de um caso curioso dos finais dos anos 1970, quando na Alemanha Federal, um jovem – desportista levou todo o grupo onde estava inserido para um banco para tentar trocar os seus rublos pelo marco alemão (a lei cambial soviética proibia levar mais que 30 rublos para estrangeiro). Estado soviético imponha aos viajantes um limite cambial muito baixo, os atletas recebiam diariamente apenas 15, no máximo 20 dólares americanos e tinham que fazer uma complicadíssima ginástica mental para poupar os últimos centavos para comprar algo para a revenda, sem esquecer as prendas para família, treinador, colegas e claro, para os responsáveis do comité olímpico (e/ou da federação), que não se opuseram à sua viagem ao estrangeiro... 

Enfim, o banco alemão não quis trocar a “moeda mais estável do mundo” e o jovem – atleta foi sancionado após voltar a URSS, apesar dos bons resultados desportivos, durante as próximas duas décadas ele se tornou “não saído”, ou seja proibido de sair ao estrangeiro. Nestas andanças de proteger a “moral soviética”, KGB sempre optava pelo seguro, pois hoje a pessoa quer trocar os rublos e amanha quiçá trocar a pátria e não pode ser, pois claro... 

Bónus 

Para antecipar as possíveis e esperadas acusações de “anticomunismoe outros –ismos menos simpáticos, gostaria de mencionar os seguintes elementos que me permitem afirmar, que fuga para estrangeiro era um dos crimes mais horrorosos, que um cidadão soviético poderia cometer contra a mãe – pátria (horizonte temporal 1953 – 1989/90). Qualquer outro crime cometido significava apenas (quase sempre) o castigo para o seu autor. Como se dizia em uma comédia soviética: “roubou, bebeu, cadeia...” A família não era sancionada pelos crimes dos seus familiares ou parentes. Por exemplo, o Estado soviético protegia os familiares directos dos assassinos em série, mudando-lhes as identidades e domicílios, etc. Já no caso de uma fuga para estrangeiro a mão do Estado era bem mais pesada, os familiares e até colegas do “traidor” poderiam perder o emprego, perdiam regalias e/ou promoções, quase automaticamente também se tornavam “não saídos”, entre outras coisas. E é tudo por hoje, companheiros, camaradas e amigos, boas leituras!

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