Hoje publicamos a 2ª parte do estudo, que o jornal português “Expresso” dedicou ao Arquivo Mitrokhin, guardado na Universidade de Cambridge. A publicação é sobre os segredos da KGB em Lisboa e as suas ligações com Portugal (ler a 1ª parte do estudo).
«Eventos Activos» em Portugal
O arquivo Mitrokhin inclui vários testemunhos sobre as atividades da residentura do KGB em Lisboa. Assim, em 1979, os principais esforços da residentura foram dirigidos para a oposição à realização de uma conferência sobre a ameaça soviética (foram organizadas ‘conversas’ para influenciar os líderes de opinião pública, foram impressos folhetos e feitas publicações). Entre os “principais objectivos” da residentura nesse ano estavam “a propaganda dos ideais do não alinhamento; o fortalecimento das relações de Portugal com os países em desenvolvimento; o estreitamento dos laços políticos e económicos [entre Portugal] e os países socialistas, em particular, a criação de ideias que apoiem a causa soviética nos assuntos internacionais”.
Já em 1979, os alvos do trabalho operacional da residentura do KGB em Lisboa eram a base da NATO, a Rádio Europa Livre e as embaixadas de três estados africanos de língua portuguesa (Angola, Moçambique e Guiné-Bissau). São também referidos alvos menores, como os gabinetes do presidente e do primeiro-ministro da república, a infiltração nos círculos parlamentares e a recolha de informações em sindicatos, nos meios de comunicação social, em organizações de esquerda e nas organizações «pró-RP da China».
No ano seguinte, talvez em consequência da vitória da coligação Aliança Democrática de Sá Carneiro e Freitas do Amaral nas eleições parlamentares portuguesas de Dezembro de 1979, a lista de tarefas era bem diferente: “Influenciar a opinião pública para promover a chegada ao poder de um governo mais moderado [de esquerda]; determinar os planos do governo português quanto à destruição da Revolução de Abril; conduzir trabalhos de inteligência contra a NATO, os Estados Unidos e a China”.
Para atingir estes objetivos, os agentes do KGB em Portugal empreenderam uma série de «medidas ativas». Assim, em 1979 eram 33. No ano seguinte, foram 59. O termo “medidas activas”, comum no jargão dos serviços secretos soviéticos, implicava toda uma série de acções subversivas destinadas a enfraquecer o Ocidente, bem como a posição dos Estados Unidos aos olhos do público europeu, provocando a discórdia entre os aliados ocidentais ou influenciando o curso de acontecimentos de importância global.
O programa de residentura do KGB em Portugal para 1980, por exemplo, previa a implementação de “medidas activas” para “comprometer o Adversário Principal [na gíria dos serviços especiais soviéticos – os Estados Unidos]”. Outras medidas visavam «tentativas de romper os laços de Portugal com os países da NATO» ou «retardar o processo de integração na CEE». Os registos do KGB relatam com orgulho “27 conversas importantes, um discurso no parlamento, a organização de três reuniões, cinco discursos em eventos públicos, uma exibição de um filme e três jornais”.
Estas “medidas activas”, que são ensinadas em cursos especiais nas escolas do KGB, foram realizadas utilizando uma variedade de métodos: propaganda pura, desinformação, manipulação dos meios de comunicação social, falsificação de documentos oficiais, infiltração nas igrejas, partidos e outras organizações. Em casos extremos, poderiam incluir «ações especiais» que envolvam vários graus de violência. Abrangiam também medidas de apoio a partidos comunistas e socialistas no estrangeiro ou que serviam de fachada para organizações internacionais como o Conselho Mundial da Paz.
Os materiais revelados por Vasily Mitrokhin sobre Portugal incluem alguns exemplos de «medidas activas» deste tipo. «Durante a campanha eleitoral de 1976, a residentura de Lisboa lançou as operações «Coilebra» e «Fado» [para imprimir] panfletos que ajudariam a fortalecer a posição do PCP nas eleições parlamentares», relata uma das entradas. Uma outra operação, com o nome de código «Praza», tinha como objectivo «impedir a entrada de Portugal e Espanha na CEE, aumentando as tensões entre os dois países e a França/Itália». Uma longa entrada de Mitrokhin de 1978 detalha o plano do KGB para conter a divulgação de informação — ou, nas palavras da residência soviética, para «reduzir a ressonância» — sobre uma conferência planeada em Lisboa sobre «o imperialismo russo, a falta de liberdade e as violações dos direitos humanos na URSS» (uma das medidas previstas era «uma conversa para influenciar» a escritora Natália Correia, uma das organizadoras da conferência). Em Fevereiro de 1981, o grupo parlamentar da UEDS (União de Esquerda para a Democracia Socialista) de António Lopes Cardoso apresentou um projecto de lei que proibia a presença e instalação de instalações de armas nucleares em Portugal. Segundo Mitrokhin, este projeto foi um resultado direto da intervenção do KGB.
Um outro evento da residentura do KGB em Lisboa, também no início de 1981, teve como objectivo criar um movimento de trabalhadores e sindicatos contra a NATO e os EUA, bem como contra a presença de armas nucleares no país. Esta operação («Operação Maré») foi lançada por uma conferência sobre desarmamento e segurança europeia presidida pelo antigo Presidente da República Francisco da Costa Gomes (nome de código: «Cavaleiro»). A conferência foi organizada sob a égide do Conselho Português para a Paz e Cooperação, uma associação portuguesa que fazia parte do Conselho Mundial da Paz, sob influência de Moscovo. De acordo com uma nota muito curta copiada por Mitrokhin, «a influência foi exercida sobre o 'Cavaleiro'» através do agente «Shalim» — identificado como «um estudante de Direito, filho do antigo presidente português Costa Gomes».
[Se trata de Francisco Varajão da Costa Gomes, nascido a 16 de agosto de 1956, em Lisboa, empenhado membro da liga comunista UEC, utilizado muitas vezes como veículo de pressão e comunicação entre o PCP e Costa Gomes. Depois do 25 de Novembro de 1975 foi estudar para Cuba. Mais tarde, regressado a Portugal, viria a suicidar-se, em 1991, aos 35 anos, quem sabe, possivelmente pelo desgosto de ver desaparecer o regime da sua escolha, o comunismo].
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| Francisco da Costa Gomes, à esquerda, e o seu único filho, Francisco, ainda criança, Lisboa, 1960 Autor: Claudino Madeira // © Museu da Presidência da República |
Para além dos materiais de Mitrokhin, existem outras fontes que mencionam a influência passada de Costa Gomes (o filho) sobre Costa Gomes (o pai). O autor da biografia Marechal Costa Gomes: «No Olho do Furacão» (2008), Luís Nuno Rodrigues, cita fontes americanas que, por exemplo, relatam que “a maior influência do PCP sobre o presidente foi através do seu próprio filho, membro da Juventude Comunista, que chegou a ameaçar o pai com uma greve de fome caso este não tomasse determinada posição favorável ao PCP”. A ex-líder comunista Zita Seabra, por sua vez, confirma que o partido incluiu Chico, filho do general Costa Gomes, nas suas fileiras. «Em momentos críticos, falava diretamente com Chico e transmitia-lhe o que me ordenavam. Houve momentos em que esse contacto se revelou decisivo para a tomada de decisão do general», escreve Zita Seabra no seu livro «Era Assim» (2007).
Um dos projetos mais ousados do KGB de 1976 recebeu o nome de código «Tejo» e envolveu a criação de uma organização para promover interesses sociais e políticos que, na prática, serviria como máquina de propaganda contra a NATO. A organização tinha um jornal próprio, cuja gestão estava a cargo do agente “Brown” – nome de código do jornalista e economista Eduardo Maia Cadete (1942-1999), um dos fundadores e históricos do Partido Socialista, que participou na fundação do partido em 1973 na Alemanha. “[A organização de fachada] levará a cabo medidas activas e, assim, terá uma influência frutuosa na opinião pública portuguesa”, lê-se em Mitrokhin. No final, em 1979, o projeto foi abandonado devido a “dificuldades relacionadas com o agente operativo no país”. “Além disso, em Portugal existem organizações de esquerda e meios de comunicação social suficientes sob o controlo do PCP que podem realizar este trabalho”, refere a documentação. Um dos filhos de Eduardo Maia Cadete, contactado pelo Expresso, afirma desconhecer quaisquer ligações do pai ao KGB.
Jornalistas verificados
Para manipular os meios de comunicação social, a residentura do KGB em Lisboa contou com a ajuda de jornalistas de confiança. Em 1977, o KGB conseguiu publicar artigos na imprensa nacional que atacavam duramente o governo britânico pela expulsão do ex-agente da CIA Philip Agee, autor de vários livros críticos da agência secreta americana. O arquivo Mitrokhin cita publicações de artigos que incluíam “expressões de apoio de Sakharov à junta chilena de Pinochet” — factos fabricados em novembro de 1975 sob as ordens do próprio chefe do KGB, Yuri Andropov, a fim de desacreditar o dissidente e vencedor do Prémio Nobel da Paz, Andrei Sakharov. Outra «medida ativa» na imprensa foi a publicação, sem assinatura, de um pequeno artigo no Diário de Lisboa, a 7 de agosto de 1979, que relacionava a elevada taxa de mortalidade infantil em Nápoles com o desaparecimento de um dos contentores da base militar norte-americana de Bagnoli, no sul de Itália. As notas de Mitrokhin indicam que a publicação deste artigo foi o resultado de uma operação do KGB.
Duas entradas do arquivo Mitrokhin apresentam um jornalista chamado Jorge Feio (nome de código «Fred»), descrito como «um jornalista progressista, um distinto editor da secção internacional do jornal português Diário de Notícias, que foi recrutado pelo KGB em 1977». Além de ser um agente «fornecedor de informações extremamente valiosas», o «Fred» era também utilizado nas operações ativas. Através dele, a residentura [do KGB] em Lisboa publicou artigos nos semanários Extra e Diário de Notícias. Os materiais de Mitrokhin falam também, de forma algo difusa, do envolvimento de Jorge Feio em medidas activas que envolviam «o uso secreto de fontes menos significativas no chamado 'mercado de boatos'». Feio morreu em novembro de 1990, aos 64 anos.
[KGB usava habitualmente os boatos, quando pretendia passar as informações, que de outra forma poderiam ser vistos, pelo público, com a maior desconfiança. Por exemplo, após a fuga, em 1976 ao Japão do piloto soviético Viktor Belenko, KGB disseminava diveros boatos sobre o homem, desde «morreu de alcoolismo», «voltou, arrependido, à URSS e está cumprir uma pena prisional» até, piscando olho ao público: «morreu, num acidante de viação». Na realidade Belenko morreu nos EUA em setembro de 2023].
Outro dos nomes mais referidos na obra de Mitrokhin é o do agente “Careca” – o escritor e jornalista Mário Ventura Henriques (1936-2006), duas vezes vencedor do prémio literário do PEN Clube e principal inspirador do Festival Internacional de Cinema de Troia. Contacto de trabalho da residência do KGB em Lisboa. Testado via PCP. “Envolvido em operações activas durante o período de 1977-82”, lê-se num dos documentos de arquivo. Um outro documento relata que «Careca» esteve envolvido na publicação de artigos que comprometiam Frank Carlucci, o antigo embaixador dos EUA em Lisboa. Estes artigos foram publicados “de acordo com as instruções recebidas do centro [quartel-general do KGB em Moscovo]”. Uma das notas de Mitrokhin refere que a cooperação do agente “Careca” com o KGB terminou depois de este ter levantado “a questão do apoio financeiro integral e exigido garantias para o futuro”. Fernanda Silva, companheira de Mário Ventura durante os últimos 16 anos de vida do escritor, admitiu que o conteúdo das notas de Mitrokhin, tal como lhe foi relatado pelo Expresso, lhe foi uma “grande surpresa”. “Sei que ele foi à rússia várias vezes, mas não faço ideia. «Nunca ouvi falar disso», disse ela.
Para além da participação na operação «Tejo», Eduardo Maia Cadete («Brown») esteve envolvido em eventos de imprensa. “Graças à influência do agente do KGB ‘Brown’”, lê-se nos documentos de Mitrokhin, “foram tomadas medidas activas para publicar textos em jornais portugueses e espanhóis”. Maia Cadete colaborou com o jornal «República» e com a revista «Vida Mundial». Os seus artigos incluíam alguns que comprometiam a Rádio Europa Livre, uma estação subsidiada pelo governo dos EUA que transmitia para os países do bloco soviético. A ligação de «Brown» ao KGB foi quebrada depois de este ter manifestado discordância com as políticas adotadas pela URSS e «ambições materiais completamente injustificadas que excederam significativamente as suas capacidades pessoais».
A lista de Mitrokhin inclui ainda o jornalista Jorge Máximo Heitor (agente «Emil»), «recrutado em 1980 enquanto trabalhava para a agência ANOP em Moçambique». “Antes de passar pela formação de agente, ‘Emil’ foi verificado através da sua filiação no PCP”, refere a nota. Em 1982 regressou a Lisboa. O contacto com ele não foi retomado.» Heitor, antigo jornalista da agência Lusa e do jornal Público, agora reformado — «porque o patrão precisa de poupar dinheiro», afirma —, confirma a sua ligação ao PCP até meados dos anos 1980, mas nega qualquer ligação ao KGB.
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| Imagem @Facebook do Jorge Máximo Heitor em janeiro de 2022 |
«Em Moçambique, jantei muitas vezes em casa do meu colega, correspondente da agência noticiosa soviética. Lembro-me bem dele, um homem baixo e forte. Éramos amigos próximos. Serviram iguarias deliciosas, bebidas e petiscos muito bons. Então, fez imensas perguntas: qual é a sua opinião sobre isto, sobre aquilo? Nunca me ocorreu. Só mais tarde percebi que a sua posição na agência era uma camuflagem.»
O jornalista e escritor brasileiro Josué Guimarães (agente «Gosha»), correspondente do jornal brasileiro «Correio do Povo» em Lisboa, é descrito como “um cidadão brasileiro, figura pública em Portugal, progressista, conhecedor dos métodos e técnicas dos serviços soviéticos […] e incluído na residentura de Lisboa em 1976. Foram realizados 42 encontros com o agente «Gosha», sendo 38 em Lisboa, dois no Rio de Janeiro e mais dois em Buenos Aires”, referem os autos. Os dados biográficos e profissionais de Josué Guimarães — como acontece em todos os outros dossiers copiados por Vasily Mitrokhin a que o Expresso teve acesso — são apresentados com grande detalhe e estão correctos. O escritor brasileiro morreu em 1986.
Os documentos de Mitrokhin referem que o antigo diretor da agência ANOP/Lusa, Fernando Lima (nome de código «Taor»), foi alvo de trabalho de inteligência por parte da residentura do KGB em Lisboa entre 1976 e 1982 e que «forneceu informações políticas». Alguns eventos ativos foram realizados através dele. Em 1981, chegou-se à informação de que «Taor» tinha ligações à extrema-direita e aos círculos militares americanos.
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| Fernando Lima, Imagem: Porto Editora |
Lima, antigo jornalista do Jornal de Notícias, diretor do Diário de Notícias, assistente de Durão Barroso e Cavaco Silva, respondeu ao texto de Mitrokhin com risos: “Em 1974, tornei-me amigo de um correspondente soviético [oficial do KGB Eduard Kovalev, que trabalhou em Portugal sob o disfarce legal do correspondente da agência noticiosa soviética TASS. Na década de 1980 Kovalev publicou, sob o seu nome e em co-autoria, a meia-dúzia de livros propagandistas em que acusava a Europa Ocidental de «se tornar um dos polos mais perigosos do terrorismo internacional»].
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| Eduard Kovalev: «Terror: Inspiradores e executantes», Moscovo, 1984 |
Meia tonelada de informações secretas em Moscovo
Os materiais copiados por Vasili Mitrokhin incluem referências a vários arquivos dos antigos serviços de informação portugueses (nome de código «Mosaica»). “No final de 1975, a residentura do KGB em Portugal recebeu do PCP o arquivo dos serviços secretos portugueses”, lê-se numa das entradas. Noutra passagem, Mitrokhin apresenta uma longa lista dos materiais recebidos: “Os comunistas portugueses forneceram ao KGB materiais sobre as operações e os planos da polícia política PIDE/DGS (Direção-Geral de Segurança); do serviço de segurança SDCI, criado após 25 de abril de 1974 e extinto após os acontecimentos de 25 de novembro de 1975; da segunda secção do EMGFA (Informação Militar), bem como materiais contendo informações sobre as operações do PCP no período de 1937 a 1975. O peso total dos materiais é de 474 quilogramas, incluindo 37 quilogramas recebidos em 26 de Março de 1977.”
Em Janeiro de 1976, foi criado um grupo especial no 5º Departamento (responsável, entre outras coisas, por Portugal) da Primeira Direcção do KGB para processar os arquivos portugueses. Para efeitos de “segurança adicional”, escreve Mitrokhin, “foram feitos 67.138 microfilmes”. O material principal foi posteriormente distribuído por vários serviços e departamentos, incluindo o Comité Central do PCUS, a GRU (agência de inteligência militar) e outros departamentos da Primeira Direcção. Vários materiais foram entregues a “amigos de outros países socialistas” (o chefe do KGB deu, entretanto, ordens para proibir o acesso a quaisquer cópias dos documentos).
As notas de Mitrokhin indicam o volume e a importância destes materiais. “Foram obtidas informações extremamente importantes sobre a estrutura, métodos de trabalho e rede de agentes dos serviços especiais dos EUA, França, Alemanha e Espanha no território de Portugal; sobre a sua colaboração (com a PIDE/DGS) e sobre a rede de agentes da PIDE/DGS em Portugal e nas ex-colónias; sobre as forças armadas de Portugal e de vários outros países; sobre os métodos de trabalho dos serviços especiais portugueses no combate à URSS e a outros países socialistas; sobre a situação operacional dos agentes no país, bem como sobre indivíduos de interesse do KGB.”
O professor da Universidade de Cambridge, Christopher Andrew, num livro que coescreveu com Mitrokhin em 1999, acrescenta que o Serviço A (responsável pela «desinformação e medidas activas») utilizou alguns destes documentos para desacreditar os serviços de informação americanos, franceses e alemães. Por exemplo, a revista «Le Nouvel Observateur» publicou uma cópia de uma das cartas de Allen Dulles (Diretor da CIA entre 1953 e 1961), testemunhando a relação de confiança que ligava os serviços de informação portugueses e americanos. Uma outra reportagem publicada na revista «Jeune Afrique», sobre o assassinato do fundador do PAIGC, Amílcar Cabral, por sua vez, relatava pormenores comprometedores aos serviços de informação francês e alemão.
Vasily Mitrokhin não é o primeiro a relatar a transferência destes arquivos para Moscovo. No seu livro de 1994, «Memórias de um Espião», o antigo general do KGB Oleg Kalugin descreve uma operação «incrivelmente ousada» na qual um camião cheio de «dados secretos de inteligência» foi transportado para a embaixada soviética em Lisboa (e depois levado de avião para Moscovo). Segundo Kalugin, o arquivo continha também materiais de “interesse limitado” sobre as operações militares americanas na Europa. O mais importante, escreve Kalugin, era “uma lista de milhares de agentes e informadores que trabalhavam para a ditadura”: “Mais tarde, as nossas autoridades usaram esta informação para forçar alguns destes agentes a trabalhar para nós [o KGB].”
No prefácio da edição portuguesa de «O Arquivo Mitrokhin», José Pacheco Pereira destaca o “grande potencial operacional” dos arquivos da PIDE, que “permitiam fazer tudo: expor informadores, identificar fugas de informação, fazer chantagens, etc. Em nenhum outro lugar estes arquivos desempenharam um papel tão trágico como em Angola, Moçambique e Guiné”. «Os ficheiros estão a matar 'Memórias de um Espião'. Mitrokhin sabia disso e, claro, Cunhal também.»
As provas de Kalugin (1994) e posteriormente de Mitrokhin (1999) foram sempre negadas pelo PCP. Os dirigentes do partido criticaram o facto de «esta história se basear em apenas dois dissidentes cujo testemunho não vale muito porque foi obtido em troca de mudança de lado». Numa entrevista publicada no «Avante!» à 13 de outubro de 1994, Álvaro Cunhal criticou a «campanha provocatória desencadeada contra o partido» após a publicação do livro de Kalugin. O líder histórico do PCP, por seu lado, admite que, em consequência “da própria invasão das instituições da PIDE (incluindo arquivos) por pessoas das mais diversas visões políticas imediatamente a seguir ao 25 de Abril, houve um roubo de documentos que foram parar aos mais diversos locais por iniciativas individuais e incontroláveis”.
Blogueiro: algumas notas explicativas
O KGB atribuía os nomes de código não apenas aos seus agentes e informadores, mas também aos adversários, às pessoas por si vigiadas e perseguidas. Os dissidentes soviéticos, vítimas das «medidas ativas» do KGB figuravam nos seus documentos secretos sob os códigos e não sob os seus nomes reais. Uma das razões era para minimizar o perigo de fuga de informação, mesmo no caso de ser originária dentro do próprio KGB: os chekistas temiam quer as estenografistas, quer os seus colegas, oficiais do KGB, que tempo à tempo, se refugiavam no Ocidente. Como tal, o facto de presidente Costa Gomes ser tratado pelo seu nome de código «Cavaleiro» não significa que ele era o agente do KGB, mas que, para as questões conspirativas, assim era tratado nos documentos da secreta soviética. No antanto, naturalmente, um destacado militar e ex-presidente da república não poderia desconhecer que o Conselho Mundial da Paz é uma criação soviética, uma «cobertura legal» às operações do KGB.
Outro ponto: os agentes do KGB costumavam tentar valorizar o seu esforço operativo, pois, dessa forma, poderiam residir mais tempo no Ocidente, em vez de voltar à ao «socialismo real» na URSS cinzenta. Por isso, era algo costumeiro, exagerar os seus feitíos nos relatórios, usando às pessoas «às cegas». Ou seja, o caso do Fernando Lima pode ser semi-verídico: por um lado, o jornalista português certamente deveria desconfiar que está conversando não com o jornalista, mas com agente do KGB, e por outro lado, poderia, perfeitamente, contar-lhe as estórias open source, sem traír o seu país. Questão em aberto: se no caso do agente Kovalev o benefício é óbvio, obtenção de informação, no caso do Lima o benefício não se vislumbra tão facilmente. Jantares e almoços fartos gratuítos? Bem, algumas pessoas realmente se vendiam até por menos...
Finalmente, comparando os objetivos do KGB em 1979 e algumas narrativas de alguns partidos portugueses em 2025 chegaremos à uma semelhança incrível, com pequenos toques da modernidade: “a propaganda dos ideais do não alinhamento (no sentido mais abrangente); o fortalecimento das relações de Portugal com os países em desenvolvimento; o estreitamento dos laços políticos e económicos [entre Portugal] e a rússia, em particular, a criação de ideias que apoiem a causa russa nos assuntos internacionais”.





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