sábado, maio 19, 2018

A comédia del arte ucraniana “Donbass” é premiada em Cannes

No festival de cinema de Cannes, na categoria do melhor realizador no programa “Un Certain Regard”, foi premiada a obra do realizador ucraniano Sergei Loznitsa, uma co-produção da Alemanha, Ucrânia, Holanda, França e Roménia, que através de uso da linguagem cinematográfica mostra o absurdo da vida quotidiana das ditas “repúblicas populares” no leste da Ucrânia ocupada.
"Donbass" na base de dados IMDB
A Donbas atual, as suas organizações terroristas “lnr” e “dnr” são perfeitos símbolos da vida numa “zona cinzenta”: do ponto de vista legal, cultural, económico, a vida no espaço entre a fantasia e realidade, horror e sonho. A realidade sem marcas claras de identificação, como a presença dos chamados “homens verdes”, os terroristas russos, que se apresentavam como “excursionistas”, embora para muitos deles a “excursão” ucraniana se tornou a final e fatal.

As filmagens decorreram no leste da Ucrânia, na cidade de Kriviy Rih, onde entre vários atores, profissionais e não, um dos papéis principais cabe aos comediantes do teatro de pantomima de Odessa, Maski Show: Natália Buzko e Georgy Deliev.
Os primeiros à aparecerem na tela são os figurinos de um estranho grupo de filmagens – como o espetador perceberá rapidamente – são “testemunhas” de uma reportagem de “notícias” fake news da propaganda russa. Uma mulher gasta, com hematomas pintadas debaixo de olhos, conta “o que presenciou”, mas aí logo surge a questão inquietante, os corpos no chão e um troleicarro danificado pela explosão, como pano de fundo na imagem são reais ou não? O final do filme, assustador e absolutamente surreal, filmado de uma forma neutra e documental, responderá à essa questão perturbadora.
Os russo-terroristas e POW ucranianos
Atores e falsários estão por toda a parte. Até o “guarda-fronteira” separatista tem o nom de guerre “Artista”. Num outro episódio, um jornalista alemão fala com os terroristas, sentados por cima de um blindado, que não querem responder uma simples pergunta: “Quem é o vosso chefe?” Como no jogo infantil, os terroristas apontam uns aos outros e então no fim apresentam ao jornalista estupefacto uma personagem colorida, um tal de “atamane cossaco” Chapai.
A maioria dos personagens do filme nem sequer possui um nome cristão, apenas os noms de guerre: Batianya (Paisão), Gyurza, Cupon (Cupão), Drovosek (Lenhador). Numa outro cena burlesca se casam separatistas com os nomes incrivelmente coloridos que parece que saíram das páginas do Nicolas Gogol: Angela Tikhonovna Kuperdyagina e Ivan Pavlovich Yaichnitsa (literalmente Ovos Mexidos). Ninguém deverá ficar surpreso se estes nomes se revelem reais.

A película é composta por uma série de cenas aterrorizantes, grotescas e hiper-realistas, sem uma conexão formal, embora correlacionadas pelo tempo e espaço. Um bandido com look dos anos 1990 organiza o show numa maternidade pobre, onde o médico chefe rouba comida e remédios. Os “guarda-fronteira” separatistas humilham os civis que venham à Donbas para visitar os seus familiares e verificar se suas casas ainda estão de pá. Os separatistas roubam, usando a coerção, a viatura de um empresário pouco simpático e ainda lhe exigem o resgate. O soldado ucraniano, barbudo e calado, capturado pelos terroristas, é levado pela cidade com letreiro “Voluntário do batalhão punitivo” e depois amarrado a um poste de energia, para que a populaça pudesse satisfazer os seus desejos mais primitivos.
Cena do filme: a populaça tenta humilhar um militar, POW ucraniano
Arte segue a realidade, a populaça separatista à humilhar a patriota ucraniana Iryna Dovhan 
No entanto, “Donbass” é nitidamente um filme antiguerra que não justifica a violência vinda de qualquer dos lados. A película mostra como a guerra danifica as pessoas, os transformando em monstros, cómicos e horríveis ao mesmo tempo.

Existe no filme um episódio tocante quando a câmara, circula de forma incessante pelos corredores labirínticos de uma pensão destruída pela guerra, onde vivem as pessoas desabrigadas. Não vamos perceber quem fez as filmagens, realizador ou alguma personagem sua, certamente movida pelos objetivos menos nobres. Pois, além de guerra moderna, “Donbass” é dedicado às mídia, redes sociais e outros intermediários que transformam a guerra em um show. A película mostra aquilo que não deveria se transformar em “apenas o cinema”.

O documentário anterior do realizador, “Dia da Vitória”, foi filmado em Parque Treptow em Berlim em 2017 e é dedicado ao atual feriado russo de mesmo nome. O novo trabalho de Loznitsa é marcado pela retórica e estética da moderna propaganda patrioteira russa (que pode ser resumida ao meme “os avós combateram”). Mas também mostra a distância intransponível entre a guerra em defesa da pátria e a sua versão “híbrida”, claramente absurda e igualmente cruel para todos os seus participantes.
A pergunta principal e calada de "Donbass" é essa: “numa guerra como essa, no seu final, porque um dia este sempre chegará, existirá o dia da vitória? Ou qualquer resultado será uma derrota?”
Primeiras duas fotos: filme documental “Dia da Vitória”, Parque Treptow, Berlim, 9/05/2017
Segundas duas fotos: marcha dedicada ao Dia da Vitória, Lisboa, 6/05/2018
A estreia mundial de “Donbass” decorreu em Cannes no dia 9 de maio, a sua exibição nos cinemas da Ucrânia está prevista ainda em 2018.

Bónus

Extrato do discurso do Sergei Loznitsa no discurso de premiação do seu filme, no fecho do festival de Cannes (publicado no Facebook do produtor ucraniano de “Donbass”, Dennis Ivanov):
Sergei Loznitsa
[...] Quero agradecer – mais uma vez – o meu Festival favorito – o Festival de Cannes – pela oportunidade de apresentar “DONBASS” ao mundo e fazer perguntas que me atormentam. Nos últimos dias, percebi, conversando com jornalistas e cineastas, o quão pouco eles sabem sobre a guerra que está acontecendo no coração da Europa exatamente agora.

[...] Enquanto decorre esta cerimónia, no extremo norte da Rússia, na colónia de regime severo, um jovem artista ucraniano, nosso companheiro diretor de cinema, continua a sua greve de fome. Ele próprio, acusado de crimes que nunca cometeu e injustamente condenado aos 20 anos de cadeia, exige às autoridades russas libertação imediata de todos os presos políticos ucranianos, encarcerados na Rússia.
Com muita dor e com grande admiração, declaro minha solidariedade com Oleg Sentsov, com todos os realizadores em diferentes partes do mundo, lutando pela liberdade, pela honra e, finalmente, pela humanidade. Não importa o quanto os regimes cruéis e despóticos nos persigam, calem a boca e nos obriguem a obedecer às regras deles, a arte do cinema permanecerá livre.

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