segunda-feira, outubro 23, 2017

Por que Putin quer controlar Ucrânia? Pergunte ao Estaline.

A atitude da Rússia tem raízes na revolução [bolchevique] – e na fome [Holodomor] que matou 13% dos ucranianos, explica a historiadora e escritora americana, prémio Pulitzer, Anne Applebaum, no seu mais recente artigo no Washington Post.

Em fevereiro de 2014, homens vestidos de camuflado, dirigindo camiões/caminhões blindados e carregando armas militares surgiram da base militar russa em Sebastopol e começaram a circular pela província ucraniana da Crimeia. Em poucas horas, haviam ocupado sedes de conselhos municipais e estações de televisão. Em poucos dias, eles cooptaram bandidos e criminosos locais para criar um governo provisório. Eles realizaram um referendo fortemente controlado e anunciaram que os moradores da região queriam pertencer à Rússia.

Enquanto isso se desenrolava, os porta-vozes russos, os jornalistas e os trolls da Internet deliberadamente envolveram a invasão numa grossa nuvem de falsidade. A anexação foi descrita como uma revolta contra “nazis” e “fascistas” em Kyiv, que haviam organizado um “golpe de estado”; de facto, o presidente pró-russo da Ucrânia havia fugido do país depois de pedir que suas tropas disparassem contra pessoas que se manifestavam contra seu governo cada vez mais corrupto e autoritário. O presidente russo, Vladimir Putin, deu discursos emotivos e anunciou a anexação da Crimeia em março [de 2014]. Seguiu-se uma campanha de vitoria hiper-patriótica elogiando a aquisição da “nossa Crimeia” (Krym nash).

No exterior, a puxada para controlar a Crimeia e o resto do leste da Ucrânia levantou alarmes: esta foi a primeira vez desde 1945 que uma fronteira europeia havia sido alterada pela força. Mas dentro da Rússia, o ato foi [considerado] como um curso de eventos perfeitamente sensato, consistente com quase um século de fobias contra Ucrânia. Profundamente embutido na consciência nacional russa está o conhecimento da sede de autonomia dos ucranianos, a conscientização da imprevisibilidade da Ucrânia – e um velho medo de que as demandas ucranianas possam se espalhar na Rússia.

Em 2014, as autoridades russas olharam com pavor aos jovens acenando as bandeiras europeias e pedindo a democracia na praça Maydan de Kyiv e estavam determinados a garantir que esse movimento nunca se espalhasse na própria Rússia: um protesto em massa contra a corrupção – particularmente aquele que termina com a ocupação do palácio do ditador – é o que os oligarcas corruptos da Rússia temem mais. Putin testemunhou exatamente esse tipo de “caos” quando era um jovem oficial da KGB em Dresden em 1989, quando a queda do Muro de Berlim o atingiu como algo catastrófico. Agora ele culpa os protestos contra si, os chamando de “agentes estrangeiros” e da Hillary Clinton.

Mas a necessidade de controlar a Ucrânia também tem raízes importantes na memória histórica da Rússia e dos KGB's. A turbulência na Ucrânia atinge os botões de pânico, porque a anarquia no coração agrícola da União Soviética quase desestabilizou Moscovo mais de uma vez. Talvez a melhor maneira de explicar a paranóia de Putin e a cobiça em relação a Kyiv é a seguinte: a Rússia lembra bem esses momentos.

O mal-estar russo em relação à Ucrânia volta ao início de [criação] da União Soviética, em 1917, quando os ucranianos tentaram, pela primeira vez, criar seu próprio estado. Durante a guerra civil que seguiu as revoluções em Moscovo e Kyiv, os camponeses ucranianos – radicais, de esquerda e forças anti-bolchevique de uma só vez – rejeitaram a imposição do domínio soviético. Eles empurraram o Exército Vermelho [fora da Ucrânia] e, por um tempo, obtiveram a vantagem. Mas na anarquia que se seguiu ao retiro do Exército Vermelho, os exércitos polacos/poloneses e o exército branco [monárquico] czarista voltaram à Ucrânia. O general branco, Anton Denikin, cruzou a Rússia e chegou à uma distância de 200 milhas / 322 km de Moscovo, quase terminando a revolução antes que ele realmente começasse.

Os bolcheviques se recuperaram – mas ficaram surpresos. Durante anos, eles falaram obsessivamente sobre a “cruel lição de 1919”. Uma década depois, em 1932, Estaline teve motivos para se lembrar dessa lição. Naquele ano, a União Soviética estava mais uma vez em tumulto, após sua desastrosa decisão de coletivizar a agricultura. À medida que a fome começou a se espalhar, ele ficou alarmado com as notícias de que os membros do Partido Comunista da Ucrânia se recusavam a ajudar na requisição, pelo Moscovo, de cereais dos camponeses ucranianos famintos. “Eu não quero aceitar esse plano. Não irei executar este plano de requisição de grãos”, reportava um informante o discurso de um membro do PC antes de “colocar o seu cartão do [membro] do partido na mesa e sair da sala”.


Estaline enviou uma carta fervescente aos colegas [do partido]: “O principal, agora, é a Ucrânia. As coisas na Ucrânia são terríveis... Se não fizermos um esforço agora para melhorar a situação na Ucrânia, podemos a perder”. Ele lembrou o movimento nacional ucraniano e as intervenções do exército polaco e branco. Está na hora, ele declarou, fazer da Ucrânia uma “verdadeira fortaleza da URSS, numa verdadeira república exemplar”. Para isso, eram necessárias táticas mais severas: “Lenine estava certo em dizer que uma pessoa que não tem a coragem de nadar contra a corrente quando necessário não pode ser um verdadeiro líder bolchevique”.

Essas táticas mais severas incluíram a colocação nas listas negras de muitas vilas e aldeias ucranianas, que estavam proibidas de receber produtos manufaturados e alimentos. Eles também proibiram os camponeses ucranianos de sair da república e criaram as barreiras entre vilas e cidades, evitando a migração interna. Equipas de ativistas chegavam às aldeias ucranianas e confiscavam tudo o que comestível, não apenas trigo, mas também batata, beterraba, abóbora, feijão, ervilhas, animais de kolkhozes e até mesmo animais de estimação. Eles procuraram celeiros e armários, destruíam as paredes e fornos abertos, procurando comida.


O resultado foi uma catástrofe humanitária: pelo menos 5 milhões de pessoas morreram de fome entre 1931 e 1934 em toda a União Soviética. Entre eles estavam quase 4 milhões (de 31 milhões de ucranianos), e eles morreram não por negligência ou falha na colheita, mas porque seus alimentos foram confiscados. A taxa de mortalidade geral foi de 13%, mas atingiu 50% em algumas províncias. Aqueles que sobreviveram, o conseguiram comendo relva/grama e insetos, sapos e rás, couro de sapato e folhas. A fome levou as pessoas à loucura: as pessoas anteriormente respeitadoras da lei cometiam roubos e assassinatos para comer. Houve incidentes de canibalismo, que a polícia observou, registou e enviou [os dados] às autoridades em Moscovo, que nunca responderam. (Em reconhecimento de sua escala, a fome de 1932-33 é conhecida na Ucrânia como o Holodomor, uma palavra derivada das palavras ucranianas de fome, “holod” e de extermínio, “mor”).

Após a fome, Estaline lançou uma nova onda de terror. Escritores ucranianos, artistas, historiadores, intelectuais – qualquer pessoa com ligação aos governos ou exércitos nacionalistas de 1917-1919 – era presa, enviada ao GULAG ou executada.

Seu objetivo não era um mistério: queria esmagar o movimento nacional ucraniano e garantir que Ucrânia nunca mais se rebelaria contra o estado soviético. Ele falou obsessivamente sobre a perda de controlo porque ele sabia que outra revolta ucraniana poderia frustrar o projeto soviético, não só por privar a URSS de grãos, mas também por aniquilando a sua legitimidade. Ucrânia tinha sido uma colónia russa há séculos; as duas culturas permaneceram estreitamente entrelaçadas; as línguas estavam intimamente relacionadas.

Se a Ucrânia rejeitar a ideologia soviética e o sistema soviético, Estaline temeu que a rejeição possa levar à queda de toda a União Soviética. A rebelião ucraniana poderia inspirar georgianos, arménios ou tajiques. E se os ucranianos pudessem estabelecer um estado mais aberto e mais tolerante, ou se eles pudessem se orientar, como muitos quisessem, em direção à cultura e aos valores europeus, então por que muitos russos não desejariam o mesmo?

Como Putin muitas décadas depois, os bolcheviques fizeram grandes esforços para ocultar a verdadeira natureza de sua política na Ucrânia. Durante a guerra civil, eles dissimulavam o Exército Vermelho como um “movimento soviético da libertação ucraniana”. Estaline – comissário de nacionalidades na época – criou os mini-estados fantoches nas províncias ucranianas, destinados a minar o governo ucraniano em 1918, bem como a “república popular de Donetsk” procura diminuir, de alguma forma, o governo ucraniano hoje.

Na sequência da fome de 1932-133, um apagão de drástico de informações foi imposto. A morte de milhões foi encoberta e negada. Era ilegal mencionar a fome em público. Foi dito aos funcionários que alterassem as causas da morte em documentos públicos. Em 1937, um censo soviético que revelou muitas pessoas desaparecidas na Ucrânia e em outros lugares foi reprimido; os chefes do gabinete do censo foram fuzilados. Os jornalistas estrangeiros foram pressionados a ocultar a fome, e com poucas exceções, a maioria cumpriu.


Claro que os paralelos não são exatos: a Rússia de Putin não é a União Soviética de Estaline. Ainda assim, mais de 80 anos após a fome e mais de duas décadas após o colapso da União Soviética, a relação entre a Rússia e Ucrânia completou o círculo completo. Mais uma vez, um líder russo fala obsessivamente sobre a “perda” da Ucrânia. Mais uma vez, um regime baseado em Moscovo vê o movimento nacional ucraniano como uma ameaça interna existencial. E, mais uma vez, Moscovo chegou aos extraordinários esforços para afastar o desafio ucraniano. Como em 1932, a constante conversa sobre “guerra” e “inimigos” na Ucrânia continua a ser útil aos líderes russos que não conseguem explicar os padrões de vida estagnados [dos cidadãos russos] ou justificar os seus próprios privilégios, riqueza e poder.

Mas a história oferece esperança, assim como e tragédia. No final, a fome [Holodomor] fracassou: Ucrânia não foi destruída. O terror contra a elite ucraniana também falhou: a língua ucraniana não desapareceu. O desejo de independência persistiu, assim como o desejo de democracia, ou uma sociedade mais justa, ou um estado ucraniano que realmente representava ucranianos. Quando se tornou possível, os ucranianos expressaram esses desejos. Em 1991, eles votaram esmagadoramente pela independência [mais de 90%]. Ucrânia, como proclama o seu hino nacional, não morreu.

No final, Estaline também falhou. Uma geração de intelectuais e políticos ucranianos foi assassinada na década de 1930, mas seu legado sobreviveu. A aspiração nacional foi revivida na década de 1960; continuou na clandestinidade nas décadas de 1970 e 1980; tornou-se viva novamente na década de 1990. Uma nova geração de intelectuais e ativistas ucranianos apareceu na década de 2000.

Se a Rússia de Putin não é a União Soviética de Estaline, Ucrânia moderna também não é a República Soviética da Ucrânia. É um estado soberano, com seus próprios líderes civis e seus próprios políticos, sua própria imprensa e seu próprio exército. Acima de tudo, os ucranianos agora podem escrever sua história e decidir por si mesmos se esse ciclo de violência finalmente chegue ao fim.

Ler texto original em inglês | tradução ao português @Ucrânia em África
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Blogueiro: geralmente as pessoas dominadas pelo sentimento anti-ucraniano e com a forte vontade de rejeirar Holodomor, pedem duas coisas: as fotos e as fontes credíveis que confirmassem o genocídio. Como sempre, recomendamos a leitura do trabalho fundamental sobre Holodomor da autoria do jurista e estudioso polaco-americano Raphael Lemkin, chamado SOVIET GENOCIDE IN THE UKRAINE (1953). 
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